«Por fim, teria que questionar essa visão, tão ingénua quanto falsa, que apresenta África como um paraíso antes da chegada dos portugueses. É que o racismo e a escravatura não foram um exclusivo europeu, muito menos português — havia racismo e escravatura entre os africanos quando os portugueses lá chegaram.»
Uma visão curta da nossa história
Cartas à Directora – “Público”, 27.08.16
No dia 29 de Junho do corrente ano, realizou-se na SEDES: Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, um debate promovido pela PASC: Plataforma de Associações da Sociedade Civil – Casa da Cidadania, que o MIL integra, sobre as razões da nossa crise, presidido pelo General Garcia Leandro e que teve como principal orador Nuno Garoupa, até há pouco tempo Presidente do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos. No debate, tive a oportunidade de expor, ainda que de forma breve, uma convicção que cada vez mais tenho: a razão maior da situação a que Portugal chegou deve-se à crescente quebra do sentido comunitário entre os portugueses, à quebra de ligação com o próprio país, explicável, desde logo, por um enviesado (passe o eufemismo) auto-conhecimento histórico.
Aproveitando a presença de Nuno Garoupa, referi depois o exemplo da série de reportagens publicadas na altura no PÚBLICO, “Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo”, da autoria de Joana Gorjão Henriques (JGH), precisamente como um contra-exemplo de como se deve promover o nosso auto-conhecimento histórico, manifestando até a minha perplexidade pela Fundação Francisco Manuel dos Santos ter patrocinado essa série. De forma elegante, Nuno Garoupa deu a entender (essa foi, pelo menos, a forma como entendi as suas palavras) que também não havia apreciado a série, mas que na altura já não havia nada a fazer, dado que havia contratos assinados a respeitar.
Manifestamente, esse não foi o caso de Diogo Ramada Curto (DRC), que no suplemento Ípsilon do mesmo jornal (19.08.2016, pp. 27-29), assina um longo panegírico à série de reportagens entretanto reunidas em livro, onde procura defender a visão da autora da acusação, que o próprio DRC verbaliza (o que por si é sintomático), de esta ser “uma visão parcial — por enfatizar unilateralmente o legado racista dos portugueses”. Acusação que, escusado seria dizê-lo, só peca por defeito. Com efeito, o que se diria, por exemplo, de uma visão da Grécia Antiga que fizesse da questão da escravatura (que também aí existiu) o alfa e o ómega? Decerto, não se diria apenas que era uma “visão parcial”. JGH, porém, pretende reduzir toda a nossa história da expansão marítima à câmara de horrores do tráfico de escravos, o que está muito para além da mera “parcialidade”.
Para ser imparcial, JGH teria desde logo que comparar a nossa colonização com as outras colonizações europeias. Por fim, teria que questionar essa visão, tão ingénua quanto falsa, que apresenta África como um paraíso antes da chegada dos portugueses. É que o racismo e a escravatura não foram um exclusivo europeu, muito menos português — havia racismo e escravatura entre os africanos quando os portugueses lá chegaram. Mas compreende-se que um facto tão banal como este seja escamoteado: ele por si só destrói a visão de JGH. Uma nota final: diz-se que a História serve também para nos fazer compreender o presente. Pois bem: à luz da visão de JGH, não se compreendem de todo as (singulares) relações de afectividade que existem entre os povos lusófonos. Se a visão de JGH fosse verdadeira, os povos colonizados pelos portugueses só poderiam ter por nós o maior ódio. Não é esse o caso — ou é?!
Renato Epifânio, Presidente do MIL (Movimento Internacional Lusófono)
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