Este Editorial do “Público” tem muito interesse sob diversos aspectos. Apesar de não constar do texto a mais ínfima referência ao “acordo ortográfico”, o que é pena, todos conhecemos perfeitamente a relação directa ou de causa e efeito entre (algum)as editoras — também ou até principalmente na área dos manuais escolares — e a tremenda aldrabice a que se convencionou chamar AO90.
Em essência, a estratégia das editoras “dominantes” é sempre a mesma: vender papel, despachar tonelagem impressa, aviar livros a granel para “maximizar os lucros”. Pois claro, de certa forma até se compreende que assim seja, uma editora é um negócio como outro qualquer e portanto visa essencialmente o lucro.
Porém, convenhamos, uma editora não é — ou, pelo menos, não deveria ser — propriamente uma fábrica de cimento, uma mina de urânio ou um arrastão industrial, por exemplo. Alguém pode usar um livro para atamancar o sofá da sala, que está coxo, ou até enfileirar uma colecção inteira de “clássicos” só para tapar rachas na parede. Mas os livros não são bem — ou não deveriam ser, pelo menos — a mesma coisa que uns tijolos ou umas pazadas de argamassa.
Ou afinal será mesmo tudo igual, Anna Karenina é a bem dizer uma saca de cimento e Os Maias não valem uma cesta de pregado fresco?
Estamos perante editoras em posição dominante que debitam argumentos absurdos para tentar enganar as pessoas e que inventam estratagemas para as aldrabar, contando com a passividade — quando não a conivência — do próprio Estado.
Neste editorial do “Público” em particular estão muito bem explicados alguns dos ditos argumentos absurdos, no caso concreto dos manuais escolares. Quanto aos tais estratagemas para aldrabar o público em geral, bem, isso já todos estamos fartos de saber e repetir, a mais flagrante (e horripilante) aldrabice é a “língua universal”, o estratagema AO90.
Objectivo comum e único: impingir volumes.
O negócio dos manuais está a abanar
Editorial, “Público”, 27.08.16
Porto Editora e Leya estão nervosas com mudanças no mercado. Os sinais multiplicam-se.
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O Governo de António Costa decidiu este ano oferecer os manuais escolares a todos os alunos do 1.º ano. Em números, estamos a falar de 80 mil crianças e três milhões de euros.
Isto significa três coisas: a) no ano lectivo de 2017/18 vão ser vendidos menos livros; b) as editoras têm boas razões para estar preocupadas e, c) finalmente, há uma medida oficial para tentar mudar as coisas e dar o primeiro passo no sentido da reutilização dos manuais, uma coisa boa para a bolsa dos portugueses e para a sustentabilidade do planeta.
Naturalmente, nem todos os livros desta primeira “geração” de 80 mil alunos vão ser reutilizados. Mas muitos serão certamente.
A ideia é que, no fim do ano, as famílias devolvam os livros para que o Governo os possa oferecer a novos alunos — e assim sucessivamente. O plano é alargar o modelo, o que transformará o mercado do livro escolar de forma ainda mais radical.
A lei portuguesa diz que os livros escolares devem durar seis anos, mas todos os portugueses com filhos sabem que não é isso que acontece. Não só não há uma cultura de reutilização, como quem tenta fazê-lo — a nível individual ou empresarial —, enfrenta obstáculos de peso. É assim há anos.
Como somos estreantes, o nível de incerteza é razoável. As crianças vão saber estimar os livros? Os professores vão pedir para que os alunos não escrevam nada, nem mesmo quando as editoras incluem exercícios pontuais, como se não fosse esse o papel dos livros de fichas associados a cada manual? Os currículos vão manter-se estáveis? O Governo não vai mudar as metas de aprendizagem?
Em países pobres como a Suíça, os manuais são oferecidos pelo Estado e ficam todo o ano na escola. São usados apenas na sala de aula. Em Portugal, como somos um país sem problemas financeiros, ouvem-se sobretudo reservas quando se fala em reutilizar.
A Confederação Nacional das Associações de Pais disse que a reutilização pode “limitar a utilização espontânea dos livros por parte das crianças” e a Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas acredita que “algumas famílias, com mais posses, possam querer comprar os manuais para poderem guardar por questões sentimentais”.
A intervenção pública mais interessante, no entanto, foi a da Comissão do Livro Escolar da APEL. A 25 de Agosto, quando muitos pais ainda não compraram nem levantaram os livros oferecidos pelo Estado, a comissão emitiu um comunicado. Para dizer o quê? Para, entre outras coisas, “destacar que, apesar da medida anunciada pelo Governo, muitas famílias estão a comprar os manuais escolares do 1.º ano”. Quem? Sobretudo os mais ricos, que quiseram “aproveitar os descontos nas livrarias e a possibilidade de deduzirem as despesas em sede de IRS”, mas também porque, sendo as crianças-proprietárias vão poder usá-los de forma “livre”. Comprar um livro novo poderá ser uma questão de liberdade, mas reutilizar um livro escolar é seguramente uma questão de ética e boa gestão.
Mesmo assim, o melhor vem no fim. A comissão da APEL sublinha que a “compra dos manuais é dos aspectos que menos pesa no regresso às aulas”, porque as famílias gastam muito mais em roupa e sapatos do que em manuais. Esta comparação, mesmo que legitimada por hábitos antigos e inquéritos internacionais, é no mínimo estranha. Os manuais, pela lei, devem durar seis anos. Mas dificilmente uma criança usa o mesmo casaco entre os seis e os 12 anos.
Não podemos esquecer que a Comissão do Livro Escolar da APEL tem apenas dois membros: a Porto Editora e a Leya.
As regras do jogo estão a mudar e as grandes editoras estão inquietas. Só a Book in Loop, uma nova empresa digital de compra e venda de manuais usados, vendeu este Verão sete mil livros, com uma facturação de 70 mil euros.
Finalmente, o negócio está a abanar.
[Transcrição integral, incluindo “links”, de Editorial, “Público”, 27.08.16. Imagem de topo de: Planeta Algarve.]