«Da língua como instrumento» [Raul Ribeiro, “DN – Madeira”]

genesis_dnoticias_logoDiário de Notícias (Madeira)

Da língua como instrumento

Raul Ribeiro

No século XIX, o “vitorianismo” surgiu como repressão de tudo o que pudesse perturbar a ordem vigente. Pela primeira vez, o Homem passou a ser o polícia de si próprio e, enquanto unidade viva de pressão social, também do seu vizinho. O moralismo daí decorrente concentrou-se na sexualidade – o mais forte e básico dos instintos. Cerceou-se a libido ocultando o máximo possível de corpo e afastando os pensamentos perversos e pecaminosos. Foi a partir deste período que a mulher passou à condição de frágil e recatada “fada do lar”, etérea e sagrada, ignorante de algumas facetas relevantes da vida, por oposição ao rude macho, desprovido de emoções e em estado de excitação permanente.

Já o Politicamente Correcto (PC) despontou nos EUA, país tão generoso na defesa dos direitos humanos quanto atávico nos preconceitos. Começou por ser grito de revolta de grupos sociais marginalizados, após séculos de opressão e humilhação, veiculando também a intenção adicional de alterar o vocabulário, para evitar ofender ou desconsiderar os indivíduos pertencentes a esses grupos.

Ao que isto chegou, em pleno século XXI, é que nem a Rainha Vitória se lembraria…

Tudo se move em torno do PC: há ONGs que, na ânsia de produzir textos limpos de impurezas que firam susceptibilidades, adoptam um dialecto praticamente ininteligível; há universidades que publicam manuais de PC, para além de promoverem uma efectiva repressão ao “insulto”, nas suas várias vertentes: raciais, religiosas, sexuais, etc.; há discursos que se enrolam em “senhoras e senhores, amigas e amigos, portuguesas e portugueses”, arrastando-se de forma irrazoável; há um acordo ortográfico que, de tanto genuflectir aos critérios do PC, nos deixou pasmados a olhar para os “tetos”; há textos pejados de embirrentas arrob@s, que saltitam por tod@s as palavras às quais é possível dar um sentido duplo, despido de género. Ler um texto assim é um@ bo@ merd@…

Em termos de conceito filosófico, tornar a linguagem neutra em termos de discriminação irá inevitavelmente conduzir a uma sociedade mais igualitária e inclusiva.

Levando este “statement” ao limite, o humor será então uma manifestação politicamente incorrecta, por externalizar os preconceitos sociais, ridicularizando os oprimidos e ignorando os opressores. Há todo um legado – que vai de Platão a Hobbes – a sustentar a tese de que o riso advém da percepção de superioridade, por isso é agressivo e humilhante, de pouco valendo posições contrárias de ilustres como Kant, Schopenhauer e Tomás de Aquino. E assim se explica o motivo de haver tão bons humoristas de direita, e um tão rarefeito sentido de humor à esquerda (que não se pode dizer em italiano – sinistra – porque é pejorativo).

Construir a sociedade ideal através da língua, eis o supremo desiderato. A língua como instrumento de igualdade!

Cabe tudo e vale tudo, desde a penalização do piropo às questões fracturantes de género, como a Cidadania dos Cartões. Paulatinamente, todas as pessoas com algum tipo de característica diferenciadora, passaram a ser portadoras de algo: de deficiência auditiva, visual, motora, de desconformidade do aparelho fonético, sendo ainda apelidadas, de forma estupidamente lírica, de “pessoas especiais”.

É um suplício memorizar as opções de género, consoante a pilinha entra ou sai, fica ou vai, ou simplesmente não é para ali chamada: homo, bi, tra, trans, cis, poli, para além dos indivíduos portadores de preconceito na orientação sexual, também chamados hetero.

Em breve lidaremos com pérolas como o portador de enfermidade crónica associada ao consumo de álcool (bêbedo), portador de extremismo e explosivos (terrorista), portador de fadiga crónica com contrato vitalício (funcionário de repartição pública), e claro, o descendente de cidadã portadora de profissão liberal de disponibilização de actividade sexual através da utilização do próprio corpo e mediante retribuição financeira, o inevitável FdaP…

Entretanto, o jovem portador de subnutrição vai mesmo morrer de fome…

Deixem a língua em paz, ou melhor dêem-lhe melhor uso, seja em intercâmbio de cultura ou de saliva, como adorno de fellatio ou como instrumento dum competente cunilingus…

Se é assim tão complicado obter uma igualdade satisfatória, ao menos que os orgasmos o sejam…

[Texto da autoria de Raul Ribeiro publicado no  Diário de Notícias (Madeira) em 15.09.16.]

 

the_rolling_stones_band_red_tongue_logo_32x24er__5b7ebbd1

Print Friendly, PDF & Email