O Atlas, a língua e os seus delírios
Acaba de ser lançado, com orgulho e devoção, o Novo Atlas da Língua Portuguesa, obra que é fruto de uma parceria ISCTE-IUL com o Instituto Camões. Para os que vêem no português uma língua em franca expansão, é a “bíblia” feita à medida. Mas mesmo para os cépticos no assunto, há-de ser útil pela profusão de material ali reunido. Para lá dos muitos números e considerações (dêem-se ao trabalho de os ler e conferir, por favor), assume particular relevo o prefácio assinado pelo ministro Augusto Santos Silva, intitulado “Da língua como solo e como horizonte”. Há nele afirmações lúcidas, como esta: “A proclamação, o panegírico e o discurso que se limita a repetir dois ou três estereótipos ou palavras de ordem, por mais mobilizadoras que sejam, servem para muito pouco, tendo aliás o efeito contraproducente de criar uma ilusão de suficiência e facilidade.” (pág. 22) Aviso que o leva a esta conclusão: “Não chega, por conseguinte, dizer que a língua portuguesa é uma das mais faladas, em todos os continentes e com enorme potencial económico. Tudo isso é verdade, como são reais as dificuldades que a sua difusão enfrenta, quer nalguns países lusófonos, quer fora deles. Cada caso é um caso e requer uma estratégia cuidada, coerente e duradoura.”
No mesmo texto, no entanto, há esta passagem verdadeiramente extraordinária: “A possibilidade de uma ‘deriva’ da variante brasileira face à europeia e africana, de tal dimensão que poderá colocar em causa o mínimo de intercompreensão indispensável à unidade linguística, é um risco real, que as políticas públicas dos países e a cooperação multilateral na CPLP não devem ignorar. Analogamente, a evolução do português oral falado em Portugal, por exemplo ‘fechando’ as vogais pré tónicas quase até à eliminação fonética delas, representa um risco de incompreensão que só convívio e a troca frequentes entre os diferentes povos falantes da nossa língua pode ajudar a ultrapassar.” Como obrigar os portugueses a deixarem de falar como falam e os brasileiros a “derivar” como “derivam”? Ele dá-nos três pistas: a “investigação científica, desde logo linguística, formal e pragmática, gramatical e discursiva”; a “padronização, certamente respeitadora da diversidade estrutural das variantes”, nela se inscrevendo “a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 [AO], mas também vários outros instrumentos de unificação e regulação”; e, por fim, “o ensino e, em particular, a formação de professores do ensino básico e secundário.” Querem melhor?
Isto corresponde a conter a força do mar com tabiques de plástico. Primeiro, a “deriva” brasileira é naturalíssima. Corresponde à evolução da sua variante fonética e gráfica, em mutação há muitas décadas. A fala portuguesa – que não é só uma, são várias, consoante as regiões – é indisciplinável e é um profundo disparate a sugestão de abrir vogais quando o nosso sistema vocálico naturalmente as fecha. Claro que isto existe porque alguém meteu na cabeça que havia de “padronizar” a língua, seja a que custo for. É curioso, então, que este Atlas seja claramente português: na articulação (um brasileiro escrevê-lo-ia de outro modo), no vocabulário, na sintaxe e no resto. Respeitando o AO, nele se escreve contacto (Portugal) e não contato (Brasil), desporto (Portugal) e não esporte (Brasil), omnipresentes (Portugal) e não onipresentes (Brasil), facto (Portugal) e não fato (Brasil), conceção (Portugal) e não concepção (Brasil), perspetiva (Portugal) e não perspectiva (Brasil), receção (Portugal) e não recepção (Brasil). Sim, tal como antes, existem duas variantes ortográficas. Só que antes eram estáveis e justificadas pelos respectivos sistemas vocálicos e agora são instáveis devido a facultatividades bizarras, grafias duplas e outras aberrações tecnicamente condenáveis.
Por isso, o problema mantém-se: se o português for um dia língua oficial na ONU, terá de se escolher entre a variante portuguesa e a brasileira. E os países africanos, que nesta matéria foram sempre o parente pobre, à falta de variantes próprias são impelidos a fazer o mesmo. A dita “padronização” é não só uma falácia como uma arma contra o progresso da língua.
Nuno Pacheco
[“Público”, 17.11.16. Destaques e “links” (a verde) meus. (A imaigi dji topo é du Insstituto Camõenss, viu?)]