«O acordo ortográfico»
«Acho o Acordo Ortográfico uma má ideia, e acho a ideia de acordo ortográfico ainda pior. Não sou dado a assinar abaixo-assinados, e devo ter assinado vários sobre o assunto. Sou parte de uma acção que pede a suspensão da sua aplicação. E no entanto, apesar de não concordar com o acordo, não concordo com muitos dos argumentos que são usados contra ele. Há várias coisas que nem este nem nenhum acordo alguma vez fará: em primeiro lugar, não vai transformar o que se escreve em qualquer das variedades de português em coisas com sentido, e muito menos em coisas inteligentes; em segundo lugar, não vai tornar mais compreensível a um brasileiro os barulhos linguísticos que se fazem em Portugal; em terceiro lugar, não vai criar nenhum mercado único para coisa nenhuma e muito menos para livros; em quarto lugar, não vai transformar o português naquilo que nunca foi, a saber, uma língua mundial.»
«Os opositores do acordo têm argumentos de vários tipos. Alguns defendem que o acordo foi feito de forma inepta (o que é verdade); outros, que está a ser aplicado de forma ilegal (o que também me parece persuasivo); outros acham que estão a defender a língua portuguesa (o que acho uma fantasia); e outros ainda acham que o estado não tem o direito de legislar sobre interesses comuns (o que acho um exagero).»
«Destes argumentos, os dois últimos são péssimos e aliás o primeiro deles também é usado por devotos do acordo. A expressão «defender a língua», tão repetida por ambos os lados, sugere actividades heróicas; mas ninguém sabe exactamente em que consistem. Se quer dizer «pôr mais pessoas a escrever de uma única maneira», seria melhor começar por proibir os erros de ortografia nas normas usadas (e já agora ilegalizar a ignorância); se quer dizer «pôr mais pessoas a falar a língua», não se percebe como uma norma ortográfica pode encorajar o congresso entre humanos; se quer dizer «tornar mais provável a aceitação da língua como língua de trabalho em grandes organizações internacionais», não há grande vantagem: a língua de facto nesses meios, a que por analogia se chama inglês, tem apenas o defeito de não ser inteligível para falantes de inglês. Por pudor deixo de parte o argumento sobre a tirania do estado.»
«A razão por que nenhuma lei sobre a ortografia é adequada é apenas que a ortografia é um hábito inofensivo. Não prejudica ninguém, e é vivida por muitas pessoas como uma espécie de segunda natureza a respeito da qual ninguém pensa dois segundos.»
«É uma maneira de fazer as coisas com que as pessoas se sentem confortáveis e que não ofende crenças ou convicções. E, mais importante, é uma maneira de fazer as coisas para cuja alteração não existe um único argumento razoável. São estes hábitos que tornam possíveis os estados. Os estados não devem legislar sobre estas coisas.»
Primeiro livro de crónicas de Miguel Tamen
Da defesa acérrima da liberdade de expressão ao repúdio absoluto do acordo ortográfico, da crítica feroz ao sistema educativo português ao desinteresse dos noticiários televisivos, da importância do café aos mistérios do exercício físico, passando pelo pau de selfie, o feng shui (ou melhor, chop suey), a misantropia, os rituais funerários, a batalha naval, a famigerada fuga de cérebros, o pequeno-almoço nas novelas portuguesas e uns certos assuntos «amor-de-mãe», há pouco que escape à malha apertada da análise certeira, irónica, muitas vezes corrosiva de Miguel Tamen.
«”Rita”, lêem alguns de nós com interesse no dentista, “acusa Sofia de não deixar Bernardo em paz. Com lágrimas nos olhos, Sofia agarra-a pelo braço e leva-a ao quarto; mostra-lhe o berço; Rita vai-se embora a cavalo, agastada.” Trata-se de um conhecido episódio de todas as telenovelas portuguesas.
Coisas têm sido escritas sobre o tópico; pergunta-se com perplexidade de crocodilo como pode haver quem siga diariamente interacções complexas entre civis filmadas a uma luz que, em casas ou jardins, lembra sempre a de uma cervejaria. Não adianta no entanto exprimir incredulidade em relação a actos praticados alegremente por grandes quantidades de pessoas. Ninguém deixou nunca de ver uma única telenovela por causa de argumentos sociológicos ou políticos ou estéticos sobre os seus hábitos. Insultar os costumes da maioria é uma forma de loucura inútil.»