A grande farra

Primeiras entradas da anunciada “revisão” do AO90.

Mas em que consistirá ao certo a dita “revisão”, hem?, perguntareis. Bom, responderei então de novo, haja pachorra, que seja pelas alminhas de quem já lá mora, salvo seja: a “revisão” do AO90 consiste, ao certo, em proibir que se chame “revisão” à coisa (é obrigatório dizer “aperfeiçoamento”, não “revisão”) e em fazer umas “concessões” aos portuguesitos, coitadinhos, enquanto se “adota” definitivamente — na íntegra e agora à descarada, já sem qualquer disfarce — a ortografia brasileira.

Quanto às “concessões” aos portuguesitos, coitadinhos, a “revisão” (ai, não, o “aperfeiçoamento“) resume-se ao que aparece no artigalho hoje publicado (e blindado contra cópia ou sequer citação) pelo pasquim electrónico “ptjornal”: a “Academia das Ciências de Lisboa” (uma coisa parecida com a Academia do Sporting, em Alcochete, com a diferença de que nesta treina-se o pontapé na bola e naquela aperfeiçoa-se o chuto na cabeça) vai determinar que “para” volta a ter acento para que para se distinga de para o que significa, portanto, que a ACL para para “refletir” de vez em quando sobre a melhor forma de por por cima o que não pode por por baixo da mesa.

Confuso? Nada disso. É lá agora confuso! Basta saber onde colocar os acentos que o AO90 “mandou” tirar e agora a ACL “manda” tornar a por por cima das letrinhas de quem para para pensar como “há de” escrever em acordês.

Pelos vistos devemos todos desde já agradecer penhoradamente pelas (duas!) “concessões”. Por mim, cá vai disto, fica já a minha parte dos obrigadinhos despachada: um ganda “brigádjinhu, viu” aos brasileiros, esses altruístas, e um não menos ganda “obrigadão” aos senhores da ACL, esses mãos-largas, essas grandes cacholas que vão “melhorando” (ou “despiorando”, como há quem diga, aliás com imensa lata) o AO90, a mais extraordinária aldrabice de aquém e de além-mar.

Depois destas (duas!) “concessões”, portanto, que são assim uma espécie de entradas ou aperitivos, os comensais da ACL vão atirar-se imediatamente ao conduto (ervilhas) e ao presigo (língua), tudo ao molho, toca a enfardar que isto nas academias não há fome, o que há é muito apetite: corta daqui, retalha dali, mistura d’acolá, reponha-se o P em “receção”, ó parceiro, chegue-me daí o sal, olha o facto, pois, vá lá, aquele C pode voltar, sim, os tugas vão adorar isso, e como fica “confecção”, hem?, os brasileiros pronunciam éqção ou éção?, não há mais língua, hem?, pst, ó menina, trazia mais uma travessazinha de língua com ervilhas, hem?

Enfim, tenhamos um módico de pudor, ao menos desviemos o olhar de tão deprimente espectáculo, os ilustres comensais a refocilar nas travessas, a empanturrar-se alarvemente com seus assados, refogados e estufados de língua cortada em fatias muito fininhas.

Em todos estes cozinhados os tachos pegaram mesmo, curioso paradoxo. O alarve repasto descambou numa farra ignóbil. Compete-nos a nós, que não fomos tidos nem achados e não tivemos absolutamente nada a ver com semelhante patuscada, pôr fim ao regabofe, ir lá dar-lhes sopa.

imagem de IMDB

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