
Língua e segurança nacional
José Luís Mendonça
6 de Fevereiro, 2017
Durante o Primeiro Congresso das Humanidades, organizado pela Universidade Agostinho Neto, em Abril de 2014, um dos palestrantes apresentou uma comunicação sobre políticas do Ensino Superior.
Em contraponto, um dos participantes tomou a palavra para esclarecer que, mais urgente que qualquer reforma do ensino superior, o que está a pedir uma reforma, agora e já, é a didáctica do nosso ensino primário. Sem um bom ensino primário não se pode ter um ensino superior produtivo.
Se o aluno entra para o primeiro ano da Universidade sem competência para criar um simples discurso escrito e oral autónomo e preciso, conciso e claro, então, da Universidade não sairá nenhum ensaísta de mérito. A chave do sucesso académico no domínio da pesquisa não está preferencialmente no volume de informação científica que o currículo académico determina, mas, icónica ou referencialmente, na dimensão do vocabulário e da codificação da língua (gramática) que ele adquire para poder entender (descodificar) o discurso científico-literário.
O Ensino é o elemento natural de preservação da língua como veículo e padrão axiológico de uma cultura e recurso da comunicação internacional. No caso particular de Angola, é urgente reformarmos a didáctica da língua portuguesa no Ensino, conferindo-lhe o objectivo prioritário de atribuir aos alunos competência linguística no domínio da hermenêutica do discurso técnico-científico e literário ou meramente enunciativo, e do seu inverso, que comporta a redacção de um texto original, com recurso aos métodos indutivo, lógico-dedutivo e a abdução hipotética. E criar competência linguística passa pelo ensino da forma correcta de ler, que implica o uso do dicionário e da gramática da língua.
Saída para o desenvolvimento
A aprendizagem da língua veicular – o português – tem uma enorme repercussão na vida social e cultural da nação. O fraco domínio da língua veicular levanta um problema geral, primário, de segurança nacional, pois não podemos substituir os técnicos angolanos nos diferentes sectores da indústria e dos serviços, por técnicos mais abalizados em termos linguísticos imigrantes de Portugal, do Brasil ou de outros países. Isso significa abrir os segredos do Estado angolano à cupidez estrangeira.
Esta questão primária que liga língua e segurança nacional ficou bem ilustrada no encerramento do Congresso das Humanidades a que nos referimos no início, quando o secretário de Estado da Cultura, Cornélio Caley, teceu algumas considerações em torno do tema “Angola: História, cultura e desenvolvimentos – Desafios”. Quando abordou o nono desafio, Cornélio Caley considerou que “os angolanos têm um nível baixo de enfrentamento das capacidades externas.”
A exigência do domínio da linguagem escrita e falada na sociedade contemporânea é cada vez maior. O jovem angolano à procura de emprego deve possuir o domínio da língua portuguesa, ter boa comunicação verbal e escrita, boa redacção e facilidade de comunicação. Esta exigência do domínio da língua é extensível à participação social e ao exercício da cidadania. Um político que fale mal o português convence menos a audiência. Tal conhecimento inclui tanto saber interpretar um texto escrito, quanto ler, escrever e falar com proficiência.
Um segundo problema que relaciona a língua veicular e a segurança nacional tem a ver com o desenvolvimento sustentável. Considerando que o principal papel da Universidade é a (re)produção do conhecimento, através da pesquisa, é bom recordar que os fundamentos dessa pesquisa residem na didáctica da língua portuguesa. Ora, sem (re)produção do conhecimento científico não pode haver desenvolvimento endógeno da Indústria, da Agricultura, da Medicina, das Pescas e do próprio Ensino, para não falar de todos os sectores da vida nacional, incluindo a própria Democracia.
Sem o domínio da língua padrão não teremos desenvolvimento sustentável, mas sim dependência do exterior. E a segurança de um país não depende apenas da tropa e dos canhões. A segurança interna ancora na capacidade para criar bens e serviços, produtos exportáveis e autonomia industrial. Tudo regressa, portanto, à Educação e ao Ensino que, por sua vez, tem como suporte essencial a didáctica da língua portuguesa.
Língua e cânone
A falácia de que o português é a língua do colono e que nós temos uma outra língua local com regras ditadas pelas línguas nacionais é isso mesmo: uma falácia. O insucesso escolar não tem nada a ver com essa pretensa discrepância entre a “língua do colono” e o “português de Angola”. Nós temos, em Luanda, mais influência do português do Brasil do que do quimbundo ou de outras línguas banto. A exemplificação muito em voga é a pronominalização. O povo coloca o pronome antes do verbo. No entanto, quando a gramática da língua portuguesa dita a regra da próclise, na sequência de uma interrogação, negação ou de um pronome, aí, todo o mundo coloca o pronome pessoal depois do verbo! Isto não provém do nosso quimbundo.
O ensino de base vive agravado pela debilidade estrututural do sistema de Educação, que se pode classificar como “doença infantil do ensino”: trata-se da pobreza linguística dos nossos professores primários e secundários, para não falar mesmo dos universitários, que não conhecem a gramática da língua e, por essa razão, ignoram o seu valor pedagógico e semântico para a formação do cidadão. Aqui está a raiz do problema.
O chamado português de Angola, uma versão da língua padrão, não pode ignorar o ensino da gramática. Se se adoptar essa versão – que eu não acredito que esteja histórica e geograficamente consolidada em Angola – mesmo assim, se, depois de adoptada oficialmente, o ensino primário continuar como está, não resolveremos o problema da proficiência linguística desse pretenso português de Angola. Como em qualquer país, existem em Angola diversos níveis de uso da língua portuguesa. Ora, na Administração Pública, na Imprensa oficial e no sector do Ensino e Educação, como em qualquer país do mundo, é o nível de língua padrão ou normal que tem de ser utilizado. É com correcção linguística que o Ministério da Educação deve publicitar os seus eventos. E a própria Universidade Agostinho Neto. É preciso respeitar e honrar o nome da instituição que o herda de um dos maiores poetas da língua portuguesa. Mas é o próprio Ministério da Educação e a Universidade que publicam cartazes onde a datação dos eventos leva crase na preposição!
A versão popular, que eu chamo de portungolano, pode ser usada na rua, nos corredores da escola, no seio da família e no discurso literário, mas, na sala de aula, na burocracia do Estado e das empresas privadas e no noticiário da TPA é o português oficial que deve servir de veículo da comunicação. Sem concessões de espécie alguma. O resto são balelas para adormecer incautos e para alguns licenciados se vangloriarem com teses mal concebidas.
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