Dia: 8 de Fevereiro, 2017

‘O que torto nasce’…

Ontem, 7 de Fevereiro de 2017, a parlamentar Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto recebeu em audição formal uma delegação da Academia de Ciências de Lisboa, a propósito da proposta de “aperfeiçoamento” do AO90 que a dita ACL pretende promover; algo que o actual  Presidente da académica instituição, Artur Anselmo, designa como “despiorar” aquela… hum… digamos… coisa.

Nuno Pacheco, que já em 2013 tinha estado em S. Bento por causa do AO90, esteve também ontem presente, mas desta vez apenas na qualidade de jornalista.

O que se segue é a reprodução do seu relato daquela extraordinária reunião, cuja gravação pode ser vista (e ouvida, claro, que só vendo ninguém acredita) AQUI.

 

“Seria assim tão necessário um acordo ortográfico?”

A audição do presidente da Academia das Ciências de Lisboa na Comissão Parlamentar de Cultura deixou no ar muitas dúvidas e uma única certeza: o acordo ortográfico nasceu torto. E “andamos nisto há 27 anos”.

Nuno Pacheco

7 de Fevereiro de 2017, 20:23

Não foi uma reunião para aprovar nada, nem para apresentar propostas de carácter científico, apesar de estar em causa o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO). Aliás, a presidente da comissão, Edite Estrela, quando se começou a falar de algo mais técnico, advertiu: “Estamos na AR, não estamos na Academia de Ciências”. Por isso, a audição do presidente da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), Artur Anselmo, na Comissão Parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, a pedido do Bloco de Esquerda, foi mais um confronto entre a iniciativa da ACL de propor “melhoramentos” ao AO e as dúvidas dos vários deputados presentes. Artur Anselmo tinha consigo uma pequena delegação: Manuel Alegre (escritor e ex-deputado do PS), Martim de Albuquerque (jurista, ex-director da Torre do Tombo) e Ana Salgado (lexicógrafa que preparou os documentos para uma eventual revisão do AO).

Edite Estrela começou por dizer que estava ali em discussão “um assunto muito importante” e Jorge Campos, do BE, quis saber por que motivo estas propostas surgiam agora; e se tinham sido avalizadas por linguistas; e se tem havido contactos com a Academia Brasileira. E outros deputados quiseram saber ainda mais: porque é que a Academia se colocava agora “como uma entidade paralela, quando sempre foi entidade integrante” do processo, perguntou Gabriela Canavilhas; e como será possível fazer “pequenos acertos quando se trata de um tratado internacional, quis saber José Carlos Barros, do PSD, autor da proposta que levou à criação de um grupo de trabalho para avaliar o impacto do AO na sociedade portuguesa.

Artur Anselmo falou de um “ambiente de descompressão”, favorável à discussão do tema, disse que a Academia Brasileira já tinha avançado ela própria com “melhorias” ao AO e deixou claro que a ACL não foi ouvida enquanto instituição neste processo porque o seu presidente à data (Malaca Casteleiro, nome que não foi invocado) se envolveu sem convocar sequer plenários. E quando lhe perguntaram por que motivo a ACL não participava nas reuniões do IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa, com sede em Cabo Verde), respondeu que sempre que a Academia solicitou ao Instituto Camões uma comparticipação nesse sentido, lhe foi dito que não havia verba. Ana Salgado disse também que a Academia enviou vários contributos para o Vocabulário que está a ser feito pelo IILP, mas que até hoje nunca teve resposta. Mesmo assim, a Academia, disse, tem 56 colaboradores a trabalhar num novo Dicionário, que deve estar pronto em fins de 2018.

Problema maior: com que ortografia? Com a antiga? A nova? A nova emendada? A ACL quer levar a discussão mais adiante. Manuel Alegre e Martim de Albuquerque, ambos contra o AO, falaram em abertura e “boa vontade”. Mas Alegre alertou: “Nenhum acordo pode uniformizar uma língua que vale pela sua diversidade.” E Martim de Albuquerque acrescentou: “Se a ideia era a unificação, Angola e Moçambique não ratificaram. Portanto isso é um mito”. Teresa Caeiro, do CDS-PP, foi contundente, afirmando que o AO foi um “total fracasso linguístico, político, cultural, social e jurídico”; Jorge Campos, do BE, disse: “Não me parece bom caminho um processo de sucessivas correcções e ajustamentos”; e Ana Mesquita, do PCP, reafirmando que o seu partido foi o único que votou contra o AO, sublinhou: “Andamos há 27 anos nisto! Devíamos ter começado há mais tempo.” E começou, lembraram outros, mas sem sucesso. “Será que era assim tão importante um acordo ortográfico?”, perguntou ainda Ana Mesquita.

A pergunta ficou sem resposta. Mas com uma certeza: a discussão continuará. Gabriela Canavilhas, que defendeu o AO, disse, quase no final, que foi dar um concerto ao Brasil e lhe “traduziram” o texto para “brasileiro”. Ana Salgado, respondendo a tal indignação, disse apenas: “Tenho uma má notícia para lhe dar: os textos vão continuar a ser adaptados”. Com ou sem AO. E isso reforça a pergunta do PCP: era assim tão importante um acordo ortográfico?

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[da edição “online”] RECTIFICAÇÃO: Apesar das declarações contidas neste texto, na verdade o PCP absteve-se quando o acordo ortográfico foi votado no Parlamento. Na reunião plenária da Assembleia da República de 4 de Junho de 1991, a proposta de resolução n.º 48/V (que aprovou, para ratificação, o acordo ortográfico) foi aprovada com votos a favor do PSD, do CDS, do PRD e de 12 deputados do PS. Votaram contra 16 deputados do PS e os deputados independentes Helena Roseta, Jorge lemos e José Magalhães. O PCP absteve-se. Está feita a rectificação.

«A nova ortografia vai nua? Vistam-na, depressa!» [Editorial do “Público”]

A nova ortografia vai nua? Vistam-na, depressa!

Nuno Pacheco

Editorial do jornal “Público” de 8 de Fevereiro de 2017

Depois de a Academia vir a terreiro dizer “o rei vai nu” já não é possível fingir que nada se passa.

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Provavelmente nenhum outro país, como Portugal, é tão cioso de querelas ortográficas. As línguas com maior difusão no planeta lidam com o tema de forma simples: aceitam as suas diversidades e seguem adiante. Isso sucede com o Inglês, o Francês ou o Espanhol, sendo que, no caso dos dois últimos, as respectivas academias não se coíbem de propor alterações, mas meramente indicativas.

Os acordos ortográficos são, também, uma originalidade nossa. Depois da revolucionária reforma de 1911, feita a pretexto de “simplificar” a escrita e o ensino, veio o AO de 1945 e, por fim, o AO de 1990 (ressuscitado em 2006 para ser depois imposto em 2011). Pelo meio, houve várias alterações e mexidas de pormenor e tentativas abortadas de fazer outros acordos, alguns até bastante radicais (o de 1986, por exemplo, abolia quase todos os acentos e criava palavras absolutamente ininteligíveis).

Chegámos a 2017 com um quadro muito pouco animador: um comprovado caos na escrita (há cada vez mais exemplos, estão online, e todos os dias são coligidos mais) e as mesmas críticas de sempre, dia a dia ampliadas pela absoluta inércia dos poderes decisórios. A diferença é que, além de vários grupos de cidadãos não terem desmobilizado, a Academia das Ciências de Lisboa veio enfim apontar uma série de erros evidentes e propor a sua correcção. Porquê? Porque a Academia está a refazer o seu Dicionário (até finais de 2018) e quer usar nele uma ortografia digna desse nome. Por isso veio propor um conjunto de “aperfeiçoamentos” que põem em causa muitas opções consagradas no AO.

Claro que, a isto, o ministro Augusto Santos Silva já veio dizer “não”, embora acrescente que “nada está isento nem de crítica nem de possibilidade de melhoria”. Ou seja: está mal, mal continuará. Que as crianças aprendam erros, problema delas. Que pais e professores sejam obrigados a ensiná-los, pouco importa. Isto é uma posição insustentável e mostra como o PS, que revê e reverte tudo e mais alguma coisa, só não revoga aquilo que manifestamente não entende: e isso chama-se ortografia.

O problema é que, depois de a Academia vir a terreiro dizer “o rei vai nu” já não é possível fingir que nada se passa. Políticos e partidos não podem furtar-se à responsabilidade. É preciso agir, de forma consciente (e, como diz a Academia, com bases científicas), abandonando de vez a inércia. A nova ortografia vai nua? Vistam-na, depressa! Ou dispam-na de vez. Mas façam algo digno, por favor.

“Links” e destaques meus.