Êróiss du márr nóbri povu náçaum valêntchi i imorrtáu

TED-Ed_logo“A crença dos políticos de que podemos, de algum modo, tornar uma Língua mais simples e mais fácil de ensinar se mexermos no sistema de escrita é uma crença tonta.”
“Uma ortografia evolui para representar sentidos e significados para as pessoas que conhecem e falam a Língua, não para ser mais fácil para miúdos de sete anos. A expectativa ou a crença de que um sistema de escrita pode ser dominado se escrevermos as palavras tal como elas soam denuncia um falso entendimento tanto de ortografia como de educação. Dou aulas a crianças de todas as idades sobre a profundidade da ortografia em Inglês — e elas ficam realmente interessadas pelo tema. Ensino-lhes que cada letra “muda” numa palavra é uma história à espera de ser contada e dou-lhes os meios para descobrirem essas histórias. Elas acabam por ficar profundamente envolvidas no estudo das palavras e dos seus significados, muito mais do que em decorar matéria para responder a testes.”

Gina Cooke, linguista, U.S.A.

Cerá ke istu tambãe ce iskreve acim?

Nuno Pacheco

“Público”, 09.02.17

Ignorando a muito instrutiva etimologia, lá somos forçados agora “a escrever como se fala.” Será?

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No título desta crónica não há uma única palavra correctamente escrita. No entanto, se ultrapassarmos a estranheza da grafia, ele soará correcto. A que propósito vem isto? De uma guerra que, sendo antiga, tem minado as actuais discussões ortográficas. Chamem-lhes “sónicos” ou “foneticistas”, há muito que alguns insistem na utilidade de “escrever como se fala” ou em submeter a escrita à fonética. Já em meados do século XVIII, no seu Verdadeiro Método de Estudar, Luís António Verney defendia: “Para que guardemos certeza, ou verdade, em nossa escritura, assim devemos escrever como pronunciamos & pronunciar como escrevemos.” Esta sugestão tinha um pressuposto: “A simplificação da ortografia contribui para a democratização cultural, na medida em que desvincula a escrita portuguesa das línguas clássicas.” Não vingou.

Mas a “teoria” tem voltado mil vezes à carga. Defensável? Alguns exemplos, curiosos. Gonçalves Viana, o mentor da feroz reforma ortográfica portuguesa de 1911, reparou um dia que o simples nome “Hipólito” poderia, “sem alteração de pronúncia”, escrever-se de 192 maneiras consoante as grafias usadas no século XIX: Hypólito, Ypólito, Ipólito, Epólito, Hipolihto, Yppóllitho, etc. Já José Pedro Machado escreveu, no seu opúsculo A Propósito da Ortografia Portuguesa (1986) que casa pode escrever-se de várias maneiras (também sem qualquer alteração de pronúncia), casa, cása, caza, kasa, káza, kása, etc, “embora para a grafia oficial só uma pode ser considerada correcta.” Portanto, com várias grafias, mantemos o som. Mas a ortografia impõe um só modo de escrita num determinado espaço geográfico. Os “sónicos” ou “foneticistas” viram esta lógica do avesso: se duas palavras diferentes soam da mesma maneira, escrevam-se da mesma maneira. Assim se justifica ótico/ótico por óptico/ótico ou ato/ato por acto/ato. Ignorando a muito instrutiva etimologia, lá somos forçados “a escrever como se fala.” Será?

Vamos por partes. No inglês, por exemplo, knight (cavaleiro) e night (noite) soam da mesma exacta maneira. Se na escrita tais palavras fossem igualizadas perdia-se o sentido de cada uma, como se perde no português igualizando ato e acto, ótico e óptico. Em francês, citando um texto de Raul Machado (1958), um mesmo som, semelhante ao é aberto português, escreve-se de mais de vinte maneiras: er, es, ès, et, êt, ets, est, aî, aie, aient, ais, ait, ay, etc. Se uma reforma ortográfica tentasse um dia igualizá-las na escrita, jamais os franceses se entenderiam.

Então por que motivo se tenta em Portugal, impor tais mudanças? Para ficarmos iguais ao Brasil, claro. Parece a velha anedota: então porque não ficamos? Simples: porque se trata de uma mirabolante utopia sem possibilidade de concretização prática. Ah, dizem alguns, mas a Língua Portuguesa é a única com duas ortografias! Sim? Pois saibam que o Espanhol tem 21, o Inglês tem 18, o Árabe tem 16, o Francês tem 15, o Sami tem 9, o Sérvio tem 8, o Alemão e o Chinês têm 5 cada e até o Mongol e Quechua andino têm cada qual 3 variantes. Ortográficas, sim.

E para quem acha que o inglês se escreve da mesma forma em todo o sítio, aqui vai uma pequena lista das largas centenas de diferenças ortográficas entre o inglês americano (o dos EUA) e o inglês padrão europeu (o de Inglaterra, já que na Irlanda ou na Escócia há ainda outras variantes). A lista foi coligida também pelo saudoso filólogo José Pedro Machado (1914-2005), na obra citada, e a primeira palavra de cada conjunto é, aqui, a americana: color, colour; center, centre; offense, offence; bark, barque; check, cheque; connection, connexion; cipher, cypher; draft, draught; fuse, fuze; gray, grey; curb, kerb; hostler, ostler; jail, gaol; kilogram, kilogramme; lackey, lacquey; mold, mould; pigmy, pygmy; plow, plough; program, programme; quartet, quartette; reflection, reflexion; story, storey. E muitos, mas mesmo muitos, eteceteras.

O mesmo sucedeu, sucede e sucederá entre o português europeu (o de Portugal) e o americano (o do Brasil). Aliás, veja-se bem o ridículo da “unificação” proposta pelo acordo ortográfico de 1990: de acordo com números “oficiais”, a grafia portuguesa e brasileira era igual em 96% das palavras e com o acordo será igual em… 98%! Ou seja: o actual caos ortográfico, as guerras e animosidades inúteis que por aí vão, valem uns míseros dois por cento. Haverá nome para isto? Há, e não é bonito. Mas vale a pena pensar no caso, seriamente. E agir em conformidade.

[“Público”, 09.02.17. “Links” e destaques meus.]