Foi por vontade de Deus?
Ana Cristina Leonardo
“Expresso”, 18 Fevereiro 2017
«Não sei se serve de argumento, mas, assim de repente, parece-me aceitável: se, 27 anos após ter sido acordado, o AO90 continua a provocar desacordo, talvez não tenha sido afinal um bom acordo. Malaca Casteleiro, um dos seus principais obreiros, avançou numa entrevista ao “Observador” com uma explicação substancialmente diferente — e quase enternecedora, diria —, para a contestação teimosa: “Quando se suprimem as consoantes, as pessoas têm saudades das consoantes mudas…”. Saudade! Palavra tão portuguesa cantada por poetas e por Amália: “É o fado da pobreza/ Que nos leva à felicidade/ Se Deus o quis/ Não te invejo essa conquista/ Porque o meu é mais fadista/ É o fado da saudade”. Terá sido Deus a inspirar o Acordo? O linguista não vai tão longe, mostrando-se até bastante humilde no caso do para/arranca. Diz e o jornal transcreve (sic): “Os nossos alunos nas escolas, como ‘pára’ tinha acento, eles tinham a tendência de pôr assento em ‘paras’, ‘paro'”. Já agora, para quê complicar a vida das pessoas com a existência de palavras homófonas em vez de optar de uma vez por uma grafia una? Por exemplo: acento ou assento? Decidam-se! No pressuposto, defendido na entrevista, que o AO serve os infantes (“é mais fácil para as crianças”) e segue a pauta do “Diário da Guerra aos Porcos”, de Adolfo Bioy Casares (o AO “não é para os que estão no último quartel da vida, como eu, é para os que estão no primeiro quartel da vida, para os jovens”), não deixa todavia de parecer injusto que tanto se exija aos falantes adultos; confrontado com: “A maioria das pessoas parece não compreender porque é que [as consoantes mudas] foram suprimidas”, a resposta sai célere: “Não compreendem e não leram a nota explicativa. Se lessem a nota explicativa, refletissem e ponderassem, viam que havia razões”. Ora batatas! Ou há simplificação ou comem todos! Mas o acordista bate o pé. Indigna-se também nas páginas do “Expresso”: “Então, andaram os nossos grandes mestres da Filologia e da Linguística, portugueses e brasileiros, a labutar pela defesa da unidade essencial da língua e agora atraiçoamos esse património?” Traição! Outro fado. No caso, do Marceneiro, que só citamos os maiores. Mas o que mais me surpreendeu foi Malaca Casteleiro afirmar não existir confusão ortográfica: “É curioso, não tenho notado”. De onde concluo: o linguista lê pouco, nem sequer o “Diário da República“. Como o invejo!»
[“Expresso” (edição em papel), 18.02.17. Adicionei “links”]