A Polémica Ortográfica
A autora da FFMS Maria do Carmo Vieira critica o Acordo Ortográfico de 1990.
«Obedecer [em determinados momentos] significa que nada valho»
Henry Thoreau«A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever uma ortografia que repugno […]»
Fernando PessoaAs palavras de Fernando Pessoa, em epígrafe, têm sido inúmeras vezes invocadas por não-acordistas e nunca é de mais transcrevê-las para relembrar aos políticos, muitos dos quais sem curiosidade e interesse em informar-se sobre a matéria, que a Língua Portuguesa, «um fenómeno de cultura» e «um legado de séculos», não pode estar sujeita a jogadas, nem dependente de aventuras que a desvalorizam, numa leveza de atitude intolerável. Foi o que aconteceu com o processo envolvendo o Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), praticamente decalcado daquele que foi proposto em 1986, se bem que os seus autores teimem, contrariando os factos, em dizer o contrário.
Lembro que o acordo de 1986 foi uma iniciativa de José Sarney (então, Presidente da República do Brasil) muito mal acolhida em Portugal, pela ligeireza com que pretendeu varrer, entre outras situações, a acentuação – nomeadamente nas palavras esdrúxulas, o que deu azo à história hilariante de Miguel Esteves Cardoso sobre o «cágado» e no que se transformava o infeliz, respeitando-se a douta decisão. O ridículo do exemplo e o acentuar da polémica adiaram, por algum tempo, a pretensão, no intuito de acalmar as veementes reacções que, no fundo, persistiram.
Já em 1986, e, por coincidência, em sintonia com a pedagogia da facilidade e o discurso miserabilista que se ia anunciando gradualmente na Escola, os autores da iniciativa, apiedados pelas «pobres criancinhas» e pela sua aprendizagem da Língua Materna, haviam pensado na abolição dos acentos pelo facto «de os alunos nas escolas fugirem dos acentos como o diabo foge da cruz!» porque «acentos não é com eles», segundo palavras do professor Malaca Casteleiro [1]. Este virá, de novo, em favor das crianças, sugerir a «supressão de consoantes não articuladas» que, em sua opinião, se tornam «incompreensíveis para uma criança de 6-7 anos», exigindo-lhe «um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua» [2] Afiança ainda o mesmo professor, desconhecendo-se o estudo em que se terá baseado, ser «mais simples para uma criança aprender a escrever “Egito”, sem pôr o “p” porque não o articula, e “egípcios” com “p” porque o articula» [1]. No entanto, a nossa experiência mostra-nos que os alunos se surpreendem com o facto, tendo em conta a lógica existente nas famílias de palavras, e questionam precisamente os professores face a esse absurdo do AO 90.
No mesmo sentido da facilidade vêm as palavras do linguista brasileiro Evanildo Bechara, que coordenou as normas deste processo no Brasil: «Começamos a aprender a língua pelo ouvido, quando crianças. Depois aprendemos pelos olhos, porque lemos as palavras. […]. Ao abolir o trema, tiramos um peso dos ombros de quem escreve. A falta do trema, longe de ser um prejuízo, é um lucro. Deixamos de escrever o trema, mas podemos pronunciar as palavras da maneira como estamos acostumados a ouvi-las» [3]. Os dois professores esqueceram, o que é estranho, dado serem linguistas de profissão, que «A função de uma ortografia não é nem facilitar o ensino da escrita nem reflectir a oralidade; a ortografia serve para codificar e garantir a coesão da língua escrita normalizada de uma comunidade nacional.» [4]
Mês: Março 2017
«Dois tempos desortografados» [Nuno Pacheco, “Público”]
Dois tempos desortografados
Nuno Pacheco
Regredimos, em pleno século XXI português, aos tempos em que a instabilidade ortográfica era vulgar
—————
Já aqui se falou disto várias vezes, mas como a praga não passa nem sequer se atenua, convém falar outra vez. Peguemos numa revista, entre muitas. Numa página, em título destacado, lemos a palavra “atualidades”, num texto “atuais”, lendo-se noutras páginas e em diferentes textos, “actual” e “actuais”. Lê-se também, num apontamento literário, a palavra “correta”, isto apesar de noutras páginas da revista, e em textos distintos, surgirem as palavras “correcta” e “correctamente”. Que revista pensam que é? A Atual do Expresso? Podia ser. Essa ou qualquer outra dos nossos dias. Mas é a Revista Portugueza ABC de 6 de Junho de 1929, vendida por uns módicos 1$50 e, claro, visada pela Comissão de Censura. Nela havia ainda palavras como “auctores”, “azes de cinêma”, “hespanhol”, “anciosa”, “scêna”, “sciência” e uma secção dedicada a “todos os sports” (onde se falava, claro, de “football”). Tinham passado dezoito anos sobre a reforma ortográfica de 1911 e faltavam outros tantos para a de 1945. A instabilidade ortográfica era vulgar nessa altura, não só na ABC, mas noutras revistas da mesma época. Pois em pleno século XXI português regredimos a esses tempos. Uns dirão que isso se deve à não-aplicação integral do acordo ortográfico de 1990; outros, que é precisamente a tentativa de aplicá-lo, na irrazoabilidade das suas regras, que gera o caos. E estes últimos têm comprovada razão. Basta ver o que se passa com o Diário da República, que devia ser modelar nesse zelo aplicativo, para levar as mãos à cabeça em desalento absoluto. De resto, um passeio por lugares públicos é também instrutivo a este respeito. As legendas de obras expostas em museus são uma delícia de ortografias mistas. Na exposição de Amadeo de Souza-Cardoso que esteve no Museu do Chiado, em duas paredes vizinhas e logo nos títulos de textos ali estampados, falava-se, à esquerda, da “recepção” que Amadeo tivera em Lisboa e, à direita, na “receção” que teve, à época, no Porto. Um primor. No CCB, também em cartazes enormes, lê-se que ali pode ser vista a “colecção Berardo” e, mais adiante, a “coleção Berardo”. Outro primor.
Pior, muito pior, é a sanha implacável dos que não olham a meios para aplicar o dito “acordo” a tudo o que mexa. Exemplo: um livro como Cartas e Intervenções Políticas no Exílio, de Mário Soares (edição Temas & Debates, Círculo de Leitores) está inexplicavelmente “traduzido” para acordês, isto quando qualquer carta deveria manter ao ser editada a ortografia com que foi escrita. Outro exemplo: na mais recente crónica de Ana Cristina Leonardo na revista do Expresso (a da edição de 25 de Março) ela cita António Guerreiro a propósito de Rentes de Carvalho. A frase citada (de um artigo que ele escreveu no Ípsilon em 6 de Maio de 2016) refere, a dada altura, “a tendência conservadora, regressiva e inócua de grande parte da actual ficção narrativa”. Isto foi o que ele escreveu. Na transcrição aparece “atual” em vez de “actual”. Ora sabendo que a autora, tal como o citado, não são partidários do chamado AO90, a emenda é da responsabilidade do próprio Expresso. Desrespeito absoluto. Que é norma instituída. Há editoras que forçam os autores, até os vencerem pelo cansaço, a aceitarem uma ortografia que não usam e rejeitam. E há quem fique com livros por publicar por causa disso. Até ilustres membros da Academia das Ciências de Lisboa!
Contra este estado de coisas, já muito se tem feito. Mas não chega, como é bom repetir. Entre as acções anti-acordo, está em curso uma deveras curiosa: conseguir estampá-lo em papel higiénico. Em rigor não é escatologia. Há papel higiénico estampado com quase tudo, desde coisas simpáticas até coisas repugnantes: rosas, pinguins, flamingos, sapos, pais natais, noivos sorridentes, hello kittys, jacarés, arame farpado, palavras cruzadas, grelhas de sudoku, notas de dólar e de euro, caras de políticos (Che, Fidel, Estaline, Putin, etc) ou presidentes norte-americanos como George W. Bush, Barack Obama e até já Donald Trump. A que visa o AO90 chama-se Operação Folha Dupla e está em curso. Haverá para a ortografia uma “saída airosa, para bem de todos”, como em 2106 profetizou Artur Anselmo, presidente da Academia das Ciências de Lisboa? Pois se não for airosa, ao menos que seja higiénica. Útil para muitos, talvez alguns até a emoldurem.
Nuno Pacheco
[Artigo da autoria de Nuno Pacheco, “Público”, 30.03.17. Imagem de topo copiada do “blog” Malomil. “Links” meus.]
AO90: «a maior aberração política» [Alfredo Barroso, jornal “i”]
Aberrações políticas à la carte
Já com os pés na pátria, constato que a maior aberração política é o acordo ortográfico de 1990, com que o então PM Cavaco Silva quis sentar-se à mesa com os países de língua oficial portuguesa.
————–
O estado do mundo não é de fiar. Está a precisar do colo de Nossa Senhora de Fátima, como aconselha a ex-militante estalinista Zita Seabra, convertida à religião de São Paulo depois de ter percorrido afanosamente a sua “estrada de Damasco”.
Uma visita virtual ao número 1600 da Avenida Pensilvânia, em Washington D.C., confirma as minhas apreensões. A Casa Branca foi ocupada por um trio de loucos furiosos e freaks racistas – Donald Trump, Steve Bannon e Kellyanne Conway –, sem dúvida as mais perigosas aberrações políticas da actualidade. De acordo com vários psicólogos, Donald Trump sofre de “narcisismo infantil”, e um estudo efectuado pela Universidade Carnegie Mellon conclui que ele “fala como uma criança” e só fica à frente de Bush filho por uma unha negra, “ao nível de uma criança entre o quinto e o sexto ano” de escolaridade. Ou seja: o mundo está mesmo perigoso!
No Palácio da Alvorada, em Brasília, a coisa também está preta. A residência oficial dos presidentes brasileiros foi abandonada por Michel Temer, o ridículo chefe de Estado não eleito de uma república das bananas, levando consigo mulher e filho: Marcela e Michelzinho. Disse Temer: “A energia não era boa. A Marcela sentiu a mesma coisa. Só o Michelzinho, que ficava correndo de um lado para outro, gostou. Chegamos a pensar: será que aqui tem fantasma?” Não era fantasma, não. Era só fantasminha, paizão! Era o seu Michelzinho a correr dum lado para o outro!
Passemos a Bruxelas, sede da União Europeia. Como se já não bastasse o hilariante luxemburguês Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia furiosamente beijoqueiro e dado a alegrias pós-prandiais esfusiantes, irrompeu agora o até há dias todo-poderoso presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, serventuário do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, a proferir invectivas contra os meridionais, deste jaez: “Não posso gastar todo o meu dinheiro em álcool e mulheres e continuar a pedir ajuda.” Suspeita-se que a metáfora deste holandês encaracolado – de um partido da Internacional Socialista que foi sovado nas recentes eleições – lhe ocorreu depois de uma visita às montras do famoso Bairro Vermelho de Amesterdão. Ou seja, a UE continua nas mãos de políticos aberrantes, supostamente abstémios e misóginos, que desprezam os países do sul e estão acorrentados à serventia dos diktats alemães. É grave.
Já com os pés na pátria, constato que a maior aberração política é o acordo ortográfico de 1990, com que o então PM Cavaco Silva quis sentar-se à mesa com os países de língua oficial portuguesa (“palopes”) para partilhar com eles um “pato de estabilidade” (ortográfica). Só que, 27 anos depois, nada se passou como ele desejava e o “pato” (sem laranja) é um fiasco político, linguístico, social, cultural, jurídico e económico. O AO90, em que abundam aberrações de todo o tipo, é, aliás, mais um dos “monstro” gerados pela governação de Cavaco Silva (o mais famoso dos quais é o da dívida pública). E aqui vão, tão- -só, dois exemplos.
O primeiro é o da eliminação arbitrária do uso do hífen. Que me pôs a suspeitar da razão pela qual a expressão “cor-de-rosa” tem hífen e a expressão “cor de laranja” não tem! Terá sido uma profecia política que só agora se consumou, com o traço de união entre o partido cor-de-rosa (PS) e a maioria parlamentar de esquerda que aguenta o governo?! E o partido cor de laranja (PPD-PSD) terá ficado sem hífen porque ameaça desmoronar-se?!
O segundo é o da supressão arbitrária do acento agudo, a provocar situações hilariantes. Veja-se o caso da expressão popular “Alto e pára o baile” (isto é, “stop”). Escrita com acento agudo antes do AO90, passou a escrever-se sem acento agudo – “Alto e para o baile” (isto é, “go”) – na grafia do AO90. Como escreveu Nuno Pacheco, no “Público”: “O disparate é livre, mas para quê abusar?” Perante a indiferença dos cidadãos, os paninhos quentes dos académicos e a cumplicidade dos partidos, será que vamos ser meros “espetadores” (sem espeto) da perpetuação deste atentado contra a língua e a cultura portuguesas, pela via do facto consumado?!
[Transcrição integral de artigo de opinião, da autoria de Alfredo Barroso, publicado em 24.03.17 pelo jornal “i”. Imagem de topo: SIC Notícias. Autoria (?) Jose Manuel Ribeiro / Reuters. “Links” e destaques adicionados por mim.]
‘Atingiu o seu limite de artigos gratuitos’
«As asneiras (…) citadas não foram detectadas em meros, modestos, blogs ou páginas de Facebook de jovens ortograficamente inexperientes, iliteratos e ignorantes. Estavam e estão em sítios oficiais de importantes instituições e empresas, públicas e privadas, incluindo estabelecimentos de ensino superior e órgãos de comunicação social.
Para saber quem “escreveu” o quê deve-se ir ao sítio da ILCAO e consultar o inacreditável “inventário” em constante actualização. Que constitui uma prova irrefutável e definitiva deste “apocalise abruto”, deste “cAOs” ortográfico – e, consequentemente, também comunicacional, cultural e educativo – que está a alastrar em Portugal. Será definitivo? Ou, pelo contrário, será contido e até revertido? De Belém e de S. Bento espera-se uma resposta. Urgentemente.»
Octávio dos Santos, “Público”, 13 de Março de 2015
Voltemos ao início: “a questão ortográfica precisa de ser controlada por determinação política”. Ora vejam algumas pérolas que tal “determinação” incentivou: “pato de estabilidade”, “fato“, “fatual“, “fatualmente“, “frição“, “fricional”, “fricionar“, “inteleto“, “inteletual“, “latose“, “otogenária”, “setuagenários“, “espetável“, “espetadores“, “contatos“, “conceção [do visto]”, “conceção [da autorização]”, etc. Há mais. Muito mais. A colheita, abundante e diária, é dos T…
Nessun dorma! Nessun dorma! Tu pure, o Principessa,
nella tua fredda stanza
guardi le stelle
che tremano d’amore e di speranza…
Ma il mio mistero è chiuso in me,
il nome mio nessun saprà!
No, no, sulla tua bocca lo dirò,
quando la luce splenderà!
Ed il mio bacio scioglierà il silenzio
che ti fa mia.
Il nome suo nessun saprà…
E noi dovrem, ahimè, morir, morir!
Dilegua, o notte! Tramontate, stelle!
Tramontate, stelle! All’alba vincerò!
“OCTANAS: Ocorrência: Censurado pelo Público…”
Ocorrência: Censurado pelo Público…
Octávio dos Santos
… Ou, mais correctamente, por algumas pessoas no Público. Hoje, no meu (outro) blog Obamatório, publiquei o meu artigo «Histeria histórica»… integralmente, quando o objectivo inicial era apenas reproduzir do mesmo um excerto. E há mais de um mês: no passado dia 12 de Fevereiro enviei-o àquele jornal para ser editado, mas apenas electronicamente – a sua elevada dimensão (quase 14 mil caracteres) tornava a sua passagem a papel improvável, se não mesmo impraticável.
Porém, no dia 23, e depois de me ter garantido, em conversa por telefone no dia 20, que ele seria publicado a 22, Nuno Ribeiro enviou-me uma mensagem em que me informava de que, afinal, e após uma «avaliação», o meu texto não sairia. Em conversa por telefone posterior com o actual editor de opinião do Público perguntei-lhe repetidamente quem efectuara essa «avaliação» e o que se concluíra nela – isto é, quais os motivos concretos que haviam levado à reversão da decisão inicial. O meu interlocutor recusou-se a responder, reiterando que o meu artigo era «impublicável», e aconselhou-me a recorrer ao actual director, David Dinis. O que fiz…
… Por correio electrónico nesse próprio dia, 27 de Fevereiro, tendo recebido uma resposta a 8 de Março. Nela, finalmente, tive conhecimento da «justificação» para a reprovação de «Histeria histórica»: é «ofensivo»… não segundo DD, que alegou não o ter lido, mas sim segundo as tais pessoas – o editor de opinião, de certeza, e os directores-adjuntos, talvez – que fizeram a tal «avaliação». Na minha réplica desafiei o director a apontar-me específicas e indubitáveis calúnias, erros, falsidades, mentiras, contidas no meu artigo. Até ao momento não o fez (aliás, não voltou a responder-me) e também não mandou publicá-lo. Portanto, e como «quem cala consente», deve-se depreender que, lamentavelmente, optou por ratificar a decisão dos seus subordinados, atentatória da liberdade de expressão, minha e não só.
É a primeira vez, em mais de 20 anos de colaboração, que um artigo meu é recusado pelo Público. Já fui alvo de discriminação e de censura, tentadas e concretizadas, por vários indivíduos e instituições, mas nunca, até agora, tal acontecera a partir do jornal fundado por Vicente Jorge Silva. Fica desde já aqui a (primeira) denúncia… que, todavia, não esgotará a minha reacção a esta indigna, intolerável ocorrência.
Publicada por OCTÁVIO DOS SANTOS à(s) 8:30 da tarde
[Transcrição integral, incluindo “links”: OCTANAS: Ocorrência: Censurado pelo Público…]