Dia: 14 de Março, 2017

O anti-acordismo “estúpido” segundo um anti-acordista “inteligente”

Segunda-feira, 13 Março de 2017

Um Acordo como deve ser

 

Existe um antiacordismo militante. E existe um antiacordismo inteligente.

O antiacordismo militante vive num desassossego. Acredita em mundos perfeitos, mas acha irreparavelmente imperfeito o mundo que nos calhou. Por isso, irredutível no seu pessimismo, não perde tempo com a razão. Para ele, ponderar é já dormir com o inimigo.

O antiacordista militante jura que nunca lê nada, livro ou jornal, grafado segundo o Acordo de 90. É uma atitude supersticiosa, fetichista, mascarada de heroicidade. E quando lembramos que é também um luxo, somos olhados como provocadores.

Na sua desconfiança da racionalidade, o antiacordismo militante não se confia menos à retórica. Perante o Acordo de 90, mas perante qualquer intervenção na ortografia, ele declara-os «crime de lesa-pátria» e proclama que «a língua é identitária do povo e da sua cultura». Ortografia, Língua, Identidade: eis o curtíssimo percurso duma visão essencialista, desatinada, que acha que o Mundo está feito assim.

Não está. O turco continuou a ser a mesma exacta língua quando, em inícios do século XX, trocou a ortografia árabe pela latina. O farsi, ou persa, mantém-se um idioma da família do nosso (peçam a um iraniano que conte de 1 a 10), mesmo se redigido em caracteres árabes. O mirandês não pertence menos ao grupo ásture-leonês por servir-se da ortografia portuguesa. E o galego, ainda que escrito à espanhola, é de todas as línguas a mais próxima da nossa, e há até quem diga que são a mesma.

Da ‘ortografia’ à ‘identidade’ vai a distância de um desvario. Sim, o discurso da ‘identidade’ é o dos charlatães da política por esse mundo afora, apelando aos instintos mais básicos do córtex reptiliano. Só um profundo sentido da tragédia pode inspirar, em matéria ortográfica, os ais pela perda do ‘património’. A militância antiacordista acharia «atentado à nossa identidade» um convénio internacional que se reunisse nesta Academia para retirar, com a devida solenidade, o acento circunflexo a “pêro”. É que nele poderia estar escondida, quem sabe, a essência da alma portuguesa.

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A primariedade do antiacordismo militante só tem paralelo na grandiloquência dos propagandistas do Acordo de 90. A acreditar neles, esse Acordo espelharia, que digo eu, garantiria a «unidade essencial da língua portuguesa».

De resto, são parcos em ideias sólidas sobre aquilo que apoiam. A uns, contenta-os o legalismo («O Acordo está em vigor, ponto final»), a outros, anima-os o fatalismo («O Acordo está em vigor, paciência»). Em momentos de lucidez, concedem que haverá umas pontinhas a amanhar, mas há-de pensar-se nisso quando tudo estiver ratificado. Não lhes passa pela cabeça que o amanho dessas pontinhas poderia, exactamente, lubrificar as ratificações. Mas pronto: também não lhes dêmos ideias.

Uma coisa anda, desde há muito, a pedir uma resposta: estaria o português precisado duma mexida ortográfica? Oh sim, urgentemente. Assim pensaram os participantes portugueses e brasileiros num magno congresso havido, em 1967, em Coimbra. Tudo em nome da ‘Lusofonia’. A palavra não existia ainda, mas o sentimento já rondava, e conduzia a actos de histeria colectiva. Acharam os congressistas que uma intervenção ortográfica não só era urgente como teria de ser drástica. E porque o problema mais insolúvel era o dos acentos nas esdrúxulas («género» / «gênero», «cómico» / «cômico»), ficou logo ali decidida, por jubilosa aclamação, a proposta de eliminação de todos os acentos nas proparoxítonas. Estavam lançadas as bases do fatídico Acordo de 86.

Tudo se passou, sempre, a esse nível: o da euforia pouco crítica, o do aconchego lusofónico, o da leviandade científica ao serviço de sonhos universalizantes. Ficaram dispensados os estudos exaustivos da realidade do idioma, mais o previsível reflexo de cada uma das medidas.

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Mas, perguntemo-nos: ainda que não urgente, continuaria uma intervenção na ortografia a ser desejável, ou mesmo conveniente? Aí, já a questão é outra. E ela mereceria uma resposta afirmativa. Veja-se o meu discretíssimo caso pessoal.

Em 1984, publiquei no Jornal de Letras uma proposta de Reforma da ortografia do português, fundada na primazia da pronúncia. Era uma proposta radical. Previa (só uns exemplos) uma arrumação ao sector do som ‘s’, que podemos grafar de 7 maneiras, e uma racionalização da grafia ‘x’, que corresponde a 5 sons diferentes. Eram medidas ousadas, mas não propriamente originais. Sabe-se que os sábios reformadores de 1911 debateram seriamente a uniformização ortográfica dos sons ‘j’ e ‘z’. Sim, quem de nós não foi ver ao dicionário se rabugice não era com “j”, ou deslize com “s”? Facto é que a minha patriótica proposta de 84 não levantou a mínima onda no lago da opinião linguística portuguesa. Dito doutro modo: fiz história, mas só eu o sei.

E porque é que fiz história? Porque, ó surpresa, o Acordo de 90 foi fundado, ele também, nesse mesmo e sadio princípio da primazia da Pronúncia sobre a Etimologia, até então primeiro e determinante critério ortográfico. Sendo assim, onde é que as coisas correram mal?

As coisas começaram a correr mal muito cedo. E começaram nessa falha, por parte dos autores do Acordo, em assumir agora a Pronúncia, e mais exactamente a Pronúncia de cada país, como critério decisivo da grafia do Português. Ficaram-se pelas águas mornas das ‘pronúncias cultas‘, em si uma novidade meritória, mas mais insinuada do que definida.

O pior veio depois. A sã prioridade do critério sonoro morreu na praia portuguesa. Fez-se facultativo o assinalar das nossas diferenças de tipo falamos e falámos. Prescindiu-se da diferenciação gráfica dos nossos pára e para. De bem maior envergadura, e bem mais prenhe de consequências, foi o desproteger das vogais átonas anteriores a certas sequências consonânticas. Refiro-me, claro, à diferenciação gráfica de coacção e coação, ou de corrector e corretor. E, se é certo que estas perfeitas novas homografias se conservam escassas, numerosíssimos são os novos casos de dúvida, e dúvida crescente, que o desaparecimento das consoantes em jogo já começou a trazer. Acenar com os restritos casos de tipo padeiro ou de tipo inflação, ou com o fechamento em actual e mesmo em bactéria, é mera demagogia. O nosso vocalismo átono, que já era duma enervante indeterminação, vê agora os escolhos sonoros multiplicarem-se exponencialmente. Não era o momento de mexer em matéria tão fluida, tão instável, tão já de si caótica. Saiu-nos a emenda bem mais insuportável que o soneto.
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