Segunda-feira, 13 Março de 2017
Um Acordo como deve ser
Existe um antiacordismo militante. E existe um antiacordismo inteligente.
O antiacordismo militante vive num desassossego. Acredita em mundos perfeitos, mas acha irreparavelmente imperfeito o mundo que nos calhou. Por isso, irredutível no seu pessimismo, não perde tempo com a razão. Para ele, ponderar é já dormir com o inimigo.
O antiacordista militante jura que nunca lê nada, livro ou jornal, grafado segundo o Acordo de 90. É uma atitude supersticiosa, fetichista, mascarada de heroicidade. E quando lembramos que é também um luxo, somos olhados como provocadores.
Na sua desconfiança da racionalidade, o antiacordismo militante não se confia menos à retórica. Perante o Acordo de 90, mas perante qualquer intervenção na ortografia, ele declara-os «crime de lesa-pátria» e proclama que «a língua é identitária do povo e da sua cultura». Ortografia, Língua, Identidade: eis o curtíssimo percurso duma visão essencialista, desatinada, que acha que o Mundo está feito assim.
Não está. O turco continuou a ser a mesma exacta língua quando, em inícios do século XX, trocou a ortografia árabe pela latina. O farsi, ou persa, mantém-se um idioma da família do nosso (peçam a um iraniano que conte de 1 a 10), mesmo se redigido em caracteres árabes. O mirandês não pertence menos ao grupo ásture-leonês por servir-se da ortografia portuguesa. E o galego, ainda que escrito à espanhola, é de todas as línguas a mais próxima da nossa, e há até quem diga que são a mesma.
Da ‘ortografia’ à ‘identidade’ vai a distância de um desvario. Sim, o discurso da ‘identidade’ é o dos charlatães da política por esse mundo afora, apelando aos instintos mais básicos do córtex reptiliano. Só um profundo sentido da tragédia pode inspirar, em matéria ortográfica, os ais pela perda do ‘património’. A militância antiacordista acharia «atentado à nossa identidade» um convénio internacional que se reunisse nesta Academia para retirar, com a devida solenidade, o acento circunflexo a “pêro”. É que nele poderia estar escondida, quem sabe, a essência da alma portuguesa.
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A primariedade do antiacordismo militante só tem paralelo na grandiloquência dos propagandistas do Acordo de 90. A acreditar neles, esse Acordo espelharia, que digo eu, garantiria a «unidade essencial da língua portuguesa».
De resto, são parcos em ideias sólidas sobre aquilo que apoiam. A uns, contenta-os o legalismo («O Acordo está em vigor, ponto final»), a outros, anima-os o fatalismo («O Acordo está em vigor, paciência»). Em momentos de lucidez, concedem que haverá umas pontinhas a amanhar, mas há-de pensar-se nisso quando tudo estiver ratificado. Não lhes passa pela cabeça que o amanho dessas pontinhas poderia, exactamente, lubrificar as ratificações. Mas pronto: também não lhes dêmos ideias.
Uma coisa anda, desde há muito, a pedir uma resposta: estaria o português precisado duma mexida ortográfica? Oh sim, urgentemente. Assim pensaram os participantes portugueses e brasileiros num magno congresso havido, em 1967, em Coimbra. Tudo em nome da ‘Lusofonia’. A palavra não existia ainda, mas o sentimento já rondava, e conduzia a actos de histeria colectiva. Acharam os congressistas que uma intervenção ortográfica não só era urgente como teria de ser drástica. E porque o problema mais insolúvel era o dos acentos nas esdrúxulas («género» / «gênero», «cómico» / «cômico»), ficou logo ali decidida, por jubilosa aclamação, a proposta de eliminação de todos os acentos nas proparoxítonas. Estavam lançadas as bases do fatídico Acordo de 86.
Tudo se passou, sempre, a esse nível: o da euforia pouco crítica, o do aconchego lusofónico, o da leviandade científica ao serviço de sonhos universalizantes. Ficaram dispensados os estudos exaustivos da realidade do idioma, mais o previsível reflexo de cada uma das medidas.
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Mas, perguntemo-nos: ainda que não urgente, continuaria uma intervenção na ortografia a ser desejável, ou mesmo conveniente? Aí, já a questão é outra. E ela mereceria uma resposta afirmativa. Veja-se o meu discretíssimo caso pessoal.
Em 1984, publiquei no Jornal de Letras uma proposta de Reforma da ortografia do português, fundada na primazia da pronúncia. Era uma proposta radical. Previa (só uns exemplos) uma arrumação ao sector do som ‘s’, que podemos grafar de 7 maneiras, e uma racionalização da grafia ‘x’, que corresponde a 5 sons diferentes. Eram medidas ousadas, mas não propriamente originais. Sabe-se que os sábios reformadores de 1911 debateram seriamente a uniformização ortográfica dos sons ‘j’ e ‘z’. Sim, quem de nós não foi ver ao dicionário se rabugice não era com “j”, ou deslize com “s”? Facto é que a minha patriótica proposta de 84 não levantou a mínima onda no lago da opinião linguística portuguesa. Dito doutro modo: fiz história, mas só eu o sei.
E porque é que fiz história? Porque, ó surpresa, o Acordo de 90 foi fundado, ele também, nesse mesmo e sadio princípio da primazia da Pronúncia sobre a Etimologia, até então primeiro e determinante critério ortográfico. Sendo assim, onde é que as coisas correram mal?
As coisas começaram a correr mal muito cedo. E começaram nessa falha, por parte dos autores do Acordo, em assumir agora a Pronúncia, e mais exactamente a Pronúncia de cada país, como critério decisivo da grafia do Português. Ficaram-se pelas águas mornas das ‘pronúncias cultas‘, em si uma novidade meritória, mas mais insinuada do que definida.
O pior veio depois. A sã prioridade do critério sonoro morreu na praia portuguesa. Fez-se facultativo o assinalar das nossas diferenças de tipo falamos e falámos. Prescindiu-se da diferenciação gráfica dos nossos pára e para. De bem maior envergadura, e bem mais prenhe de consequências, foi o desproteger das vogais átonas anteriores a certas sequências consonânticas. Refiro-me, claro, à diferenciação gráfica de coacção e coação, ou de corrector e corretor. E, se é certo que estas perfeitas novas homografias se conservam escassas, numerosíssimos são os novos casos de dúvida, e dúvida crescente, que o desaparecimento das consoantes em jogo já começou a trazer. Acenar com os restritos casos de tipo padeiro ou de tipo inflação, ou com o fechamento em actual e mesmo em bactéria, é mera demagogia. O nosso vocalismo átono, que já era duma enervante indeterminação, vê agora os escolhos sonoros multiplicarem-se exponencialmente. Não era o momento de mexer em matéria tão fluida, tão instável, tão já de si caótica. Saiu-nos a emenda bem mais insuportável que o soneto.
Para que a tempestade fosse mesmo perfeita, não se cuidou de uma prevenção de riscos, nem depois se vislumbrou qualquer intervenção pedagógica. Essa total ausência de acompanhamento profissional das sacudidelas que um Acordo destes sempre traria, essa ausência é, em si mesma já, uma forma de pública auto-desconsideração. E se é certo que, por parte dos linguistas portugueses, o interesse pelo Acordo de 90 é, e foi sempre, decepcionante, também é verdade que a célebre “Nota Explicativa” dos autores do Acordo ficou estes 27 anos a falar sozinha. É que jamais alguém forneceu a mínima defesa técnica, científica, do Acordo. Tudo quanto se ouviu foi alarido ideológico, jogos de sombras sobre uma etérea ‘unidade’, numa ainda mais impalpável ‘lusofonia’.
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E agora? O cenário não está para festas. Dadas as patentes limitações do legislador em matérias linguísticas (lembrou-o hoje Nuno Pacheco no Público), resta-nos a resistência até ao fim dos nossos dias, que se desejam longos e repletos.
Não era o futuro que sonhávamos? Não era. Alguém o pediu assim? Ninguém, que se saiba. Pobres, sim, dos professores, pobres das criancinhas. O verdadeiro problema ainda são eles, os que não têm safa. São eles os que merecem, e por isso podem exigir, que abandonemos a zona de conforto, e devem poder contar com o nosso empenhamento, o nosso activismo. Onde restar ainda uma brecha de racionalidade, é obrigação nossa explorá-la.
A primeira medida inteligente poderia ser que, sim senhor, algumas propostas do Acordo de 90, não sendo transcendentais, são aceitáveis. Estão entre elas
― a eliminação do hífen em formas de haver de,
― a eliminação de acentos nas formas verbais dêem, crêem, lêem ou vêem (mas nunca em dêmos ou em fôrma),
― a inclusão no alfabeto das letras K, W e Y,
― uma boa arrumação nos usos do hífen,
― a eliminação do ‘c’ em Árctico e Antárctico,
Também não tenho objecção de princípio a que os nomes dos meses e das estações se iniciem por minúscula. Sem entusiasmo, mas também sem birra de maior.
E, no limite, até concordaria com a eliminação do acento gráfico em estóico, heróico ou paranóico, coisa que, vendo bem, não serve qualquer propósito unificador, e apareceu no Acordo como Pilatos no Credo.
Uma palavra sobre os “aperfeiçoamentos” que a Academia das Ciências recentemente propôs para o Acordo de 90. São, a meu ver, medidas problemáticas, ao visarem uma observância ainda mais rigorosa dos propósitos unificadores do Acordo e, sobretudo, ao pressuporem no utente português um conhecimento bastante detalhado das variantes brasileiras. Mas só um exame de listas exaustivas das consequências das medidas propostas permitirá uma apreciação ponderada.
Um antiacordismo inteligente aceita as realidades do idioma, tal como recusa o bálsamo das retóricas identitárias. Mas não se faz de desentendido, e olha com apreensão as novas e crescentes confusões que o Acordo de 1990 vem fomentando. E, mesmo divertindo-se com as criativas hipercorrecções que cada dia florescem, vê nelas a prova provada de quanto tino haverá de ter-se quando se quiser intervir na ortografia do Português europeu, essa complexa e fascinante relojoaria.
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Vamos então já para novo Acordo? Calma. Será preciso primeiro remover o actual, e dar depois tempo a que os anticorpos que ele gerou se diluam. Uma coisa é certa: a nossa ortografia está mesmo precisada duma boa demão. Uma demão bem concebida, bem elaborada, bem conduzida. Pode ir-se pensando nisso, sem pressas, sem sobressaltos, e sobretudo sem assaltos aos viandantes.
O Brasil tem, no campo da ortografia, problemas próprios, graves e crescentes, e há-de querer, um dia, dar-lhes solução adequada. Será difícil pormo-nos todos de acordo, e o mais certo é nunca mais haver ‘Acordo’ nenhum.
Ao contrário de outros países colonizadores, Portugal abandonou historicamente o idioma no Brasil à sua sorte. Isto é, nunca investiu na ‘protecção’, no estímulo, da sua norma, sobretudo em cenário colonial. E eu acho que fez bem. Permitiu o desenvolvimento duma gramática alternativa que, em não poucos aspectos, se revela mais rica, mais flexível. E a linguística portuguesa deveria evitar dar hoje apoio, mesmo por omissão, aos sectores mais reaccionários da linguística brasileira.
A nossa História foi aquela que foi, e a «defesa da unidade essencial da língua portuguesa» é hoje tagarelice ideológica, nunca tendo sido (e, repito, ainda bem) um empenho político. Sim, Portugal nunca foi linguisticamente imperialista. Uma parvoíce? Um golpe de sabedoria? É tarde para nos preocuparmos com respostas. A «desagregação» da língua portuguesa, que cada Acordo disse querer estancar, é de há muito irreversível.
Em suma: o ‘Acordo’ do futuro poderá ser um acordar em não nos empatarmos mais uns aos outros. E esse, senhores e amigos, será, finalmente, um Acordo como deve ser.
Academia das Ciências de Lisboa
9 de Março de 2017Fonte: Um Acordo como deve ser, “Pórtico da Língua Portuguesa”.
Via Isabel Coutinho Monteiro. Destaques e “links” meus.