A loba e a porca

Este artigo do “Jornal de Angola” não tem qualquer interesse, à primeira vista, dado afinar pelo diapasão “técnico” do costume (a treta da “revisão”), mas uma segunda leitura permite-nos perceber um fenómeno já nada estranho: afinal, este fulano, que ainda há menos de um ano dizia cobras e lagartos do AO90, agora posiciona-se claramente para que lhe arranjem um tachinho — também para ele, pelos vistos, a porca da ortografia tem mais tetas do que a Lupa Capitolina — na putativa CTR. A filial angolana, no caso, que as tetas da loba são muito flexíveis, bem esticadas chegam a quatro Continentes.

De facto, os dois textos do mesmo autor são de tal forma contraditórios, na forma e no conteúdo, na adjectivação e no posicionamento, na quase violência de um e na total passividade de outro, que a gente fica a magicar: o que diabo terá acontecido a este homem entretanto? Que perfume lhe aflora hoje as ventas quando há tão pouco tempo torcia com nojo o nariz a um tão fedorento assunto como é o AO90?

Revisitação ao dogmático Acordo Ortográfico

Filipe Zau |*

8 de Abril, 2017

Das vinte e uma Bases do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) há, segundo o Parecer Oficial de Angola, aspectos que são considerados positivos, outros que justificam reponderação e outros ainda que geram dificuldades educativas.

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A especificidade deste assunto leva-nos a transcrever por partes o documento editado, em 2010, pelo Ministério da Educação da República de Angola, com o título: “Síntese das sínteses do parecer sobre o Acordo Ortográfico de 1990”. O nosso propósito é de proporcionar uma maior difusão pública sobre a necessidade de se “rectificar para se ratificar” o AO90, face a uma posição crítica e não exclusiva do Estado Angolano.

De salientar que, ultimamente, a Academia de Ciências de Lisboa (ACL) divulgou um documento aprovado em plenário, intitulado “Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” que, de certo modo, se associa ao movimento de críticos ao texto do AO90, constituído por intelectuais com um número relevante de académicos de vários países de língua oficial portuguesa (veja-se em http://www.acadciencias.pt/documentloads/7764123_ao1990_acl.pdf ).

A ACL, enquanto “órgão consultivo do Governo português em matéria linguística” considera, entre outros aspectos, que o texto legal AO90 é, por vezes, “ambíguo, omisso e lacunar” e que o mesmo não estabelece “uma ortografia única e inequívoca, deixando várias possibilidades de interpretação em muitos casos”, alertando que tal facto “tem provocado alguma instabilidade ortográfica”.

Critica, por outro lado, o Vocabulário Ortográfico Comum (VOC), coordenado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), do qual se desconhecem os critérios adoptados pelas equipas responsáveis. Considera que o mesmo “apresenta versões específicas para cada país, o que contraria o espírito e o propósito de unificação ortográfica do texto legal”. Acrescenta, ainda, que o preâmbulo do AO90 “previa a elaboração taxativa de um vocabulário, não de vários, que reunisse as grafias comuns”.

De acordo com o Parecer Oficial de Angola, na Base 1, “do alfabeto e dos nomes próprios e derivados”, consideram-se positivos: a concentração, numa só, das Bases I, II, IV; VIII, e LI do documento de 1945; a explicação do alfabeto, permitindo várias designações para certas letras; a integração do alfabeto das letras K, W e Y nos casos explicados; a aceitação de combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à língua (nos casos explicados).

Justificam reponderação: a não explicação de normas para o uso do K e do W, nos casos de influência das línguas bantu e malaio-polinésias; a diferença de critérios nos topónimos terminados em d; a oscilação k/qu, mesmo em línguas de origem europeia.

Algumas das dificuldades educativas: porque aceitar David e Davi, mas não Madrid/Madri ou Valhadolid/ Valhadoli (só sendo válidas as que contêm d); note-se o uso de kilo-watt, mas quilograma… (Houaiss já só considera a forma quilo, mas em grafias não canónicas: quilcampera (?), quilohertz (?), quilochom (?)… Como explicar isto aos alunos? Em que critérios deve o professor firmar-se?

Na Base II, “do h inicial e final”, consideram-se positivos: a suspensão de um segmento da Base III de 1945 (a suspensão nas formas hei, hás, há… após os pronomes intercalados no verbo haver: di-lo-ei, fá-lo-á, vê-lo-emos…; a manutenção quase inalterada do texto de 1945 (bastante claro no caso desta Base); a manutenção do hífen, à semelhança de 1945.

Justificam reponderação: a razão etimológica invocada nesta base entra em contradição com os fundamentos da Base IV (imprimindo incoerência ao texto); o título da Base deveria refletir o “h medial”, uma vez que ele é, nela, considerado; a supressão da referência a «húmido» e a «humor» (compreende-se, por causa da situação brasileira, mais isto gera incoerência mais uma vez), pois contradiz a essência da base (a razão etimológica).

Algumas das dificuldades educativas: anti-higiénico, sobre-humano, sub-humano… Note-se que, no caso de formas como «desumano», «inumano», «inumar», «inóspito»… se optou, em 1945, por uma outra solução, desaparecendo o “h”. Por que razão não reponderar esta questão? Haverá disparidade de soluções que poderiam ser minoradas. E se o aluno escrever «úmido». Deve ser-lhe assinalado erro?

Na Base III “da homofonia de certos grafemas consonânticos”, consideram-se positivos: a discriminação que é feita, tal como em 1945, das várias situações de homofonia entre grafemas: ch/x, s/ss/c/ç/x, x/z… Justificam reponderação: fala-se na necessidade de diferenciação dessas «homofonias», mas o único suporte explicativo é o da memória; fica isto agravado pelo facto de, na «introdução» a esta Base, se ter eliminado a referência etimologia; não se explica como resolver divergências entre grafias duplas.

Algumas das dificuldades educativas: parece-nos pouco, numa perspectiva didáctica; sendo importante, a memória deveria ser complementada com conhecimentos de «História da Língua» (cf. Etimologia); sem conhecimentos de etimologia, os professores não encontrarão explicações para certos usos.

Na Base IV “das sequências consonânticas”, consideram-se positivos: a tentativa de aproximação entre normas euro-afro-asiático-oceânica e a brasileira (apesar da complexidade desta Base).

Justificam reponderação: a não consideração da Base VII (de 1945), que esclarecia múltiplas dúvidas; o empobrecimento perante outras línguas (não apenas românicas), e a maior dificuldade na aprendizagem dessas línguas; a incoerência desta Base perante pressupostos da Base I (aqui anula-se a razão etimológica; naquele Base (a II), o h justifica-se por razões etimológicas; a explosão de facultatividades (já existiam em 1945, mas em muito menor grau); as frequências referidas na nota explicativa não são nem exactas, nem pertinentes (o que conta são as ocorrências).

Algumas dificuldades educativas: «súbdito», «subtil», «amígdala», «diafragma», «fragmento», «designar», «amnistia», «indemnizar», «omnipotente», «aritmética»…; «ação» (mas «action», «accion», «aksjon», «aktion», etc…); tais facultatividades só não consideram a divergência entre as normas europeia e brasileira, porquê? Fala-se em 0,54% (600 em 110.000); ora considerando os cognatos, só a palavra acção envolve mais de 4.000 modificações…

Ou se repondera a Base ou se rectificam os valores, que estão longe da realidade. Em outras edições continuaremos a divulgar o Parecer Oficial de Angola sobre as outras dezoito Bases do AO90, tal como constam do respectivo documento.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

[Destaques e “links” meus. Imagem copiada do “blog” Garfadas Online.]