Banda larga ou rédea curta?

Aparentemente, esta é uma boa notícia. Aparentemente, será possível, por exemplo, entregar e subscrever via internet petições, iniciativas legislativas de cidadãos (ILC) e iniciativas populares de referendo (IPR). Aparentemente, isto “será o exemplo, ao mais alto nível dos órgãos de soberania, de aposta na sociedade digital”.

Aparentemente, nada contra.

A começar pela meritória intenção de acabar de uma vez por todas com a fantochada das “petições” geradas automaticamente em plataformas privadas online, com “subscrições” igualmente automáticas, que ninguém valida (ou invalida), com métodos de “assinatura” mais do que suspeitos, com toda a latitude e “liberdade” para as mais inacreditáveis aldrabices. No Parlamento Europeu existe um mecanismo de subscrição de petições online; não tem comparação este “portal” com as tais plataformas privadas onde é possível peticionar tudo e mais um par de botas, sem o mais ínfimo dos requisitos, sem um mínimo de credibilidade e em ambiente (virtual) de total (e alegre) irresponsabilidade.

No entanto, repito, isto ele é tudo aparentemente. Portugal, como sabemos, não é propriamente “a” Europa, assim como o nosso velho Palácio de S. Bento não é exactamente o mastodôntico Parlamento Europeu.

Quero dizer, cá na minha: há ali assim, no arrazoado da peça jornalística, umas quantas expressões técnicas que não me agradam nem um bocadinho. É um pouco estranho misturar na mesma frase os verbos “entregar” e “subscrever”, referindo-se ambos a uma mistura ainda mais improvável de petição com ILC e IPR, como se fossem a mesma coisa ou sequer coisas parecidas; aquela formulação “tipo” tudo ao molho e fé em Deus parece-me algo bizarra.

É que, se passar a ser assim mesmo, e apenas daquela forma, então não só se confundem mecanismos de acção cívica totalmente diferentes, nos requisitos, nas finalidades, no objecto e na eficácia, como também se transforma qualquer dos três tipos de mecanismo em acções controladas pelo próprio Parlamento, cuja maioria forma Governo.

Ora, como dizia lapidarmente não sei quem: Hay gobierno? Soy contra!  .

Condicionando os mecanismos a uma única via (exclusivamente virtual, ainda por cima), se for esse o caso, então o Parlamento deixará de ser o destinatário por inerência e passará a ser o depositário, logo, o veículo, logo, o filtro, logo, o controleiro das ditas acções — as quais, então, e também por inerência, deixarão de ser cívicas já que escaparão totalmente ao controlo dos respectivos promotores, voluntários, apoiantes e… subscritores.

Por definição, tanto as iniciativas legislativas de cidadãos como as iniciativas populares de referendo são iniciativas cívicas, ou seja, acções promovidas por cidadãos pelos seus próprios meios e no âmbito da chamada “sociedade civil”. Ora, neste caso, trocar a ordem dos factores não é arbitrário, é uma arbitrariedade: significa “oferecer” aos ditos cidadãos a “possibilidade” de literalmente lhes ser retirado o direito de promoverem eles mesmos qualquer espécie de acção.

Veremos, então: será isto activismo em “banda larga” ou será afinal à rédea curta?

Burro velho não toma andadura, lá diz o provérbio, e se a toma pouco dura. Ora, este burro aqui, além de velho, desde há muito rumina pensativamente que em Portugal existem imensas cavalgaduras, decerto, mas o pior é que no meio dessas pastam muitas (e ferozes) bestas.

Parlamento torna-se totalmente digital até ao final do ano

AR quer dar o exemplo da aposta no digital e na transparência com mais informação sobre o processo legislativo e maior presença nas redes sociais.

Maria Lopes – 19 de Abril de 2017, 15:33

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A Assembleia da República deverá tornar-se totalmente digital ainda este ano. O que significa que será possível, por exemplo, entregar e subscrever via internet petições, iniciativas legislativas de cidadãos (ILC) e iniciativas populares de referendo (IPR), acompanhar todo o processo legislativo de um diploma, saber se há leis que precisam de regulamentação e se o prazo para isso está a esgotar-se, conhecer o sentido de voto de cada deputado, acompanhar em tempo real praticamente todos os trabalhos das diversas comissões parlamentares e ter mais notícias do que se passa no Parlamento nas redes sociais.

No processo de “desmaterialização integral das comunicações relativas ao processo legislativo”, o Parlamento vai “muito brevemente” celebrar um protocolo com os restantes órgãos de soberania – Presidência da República, Governo e Tribunal Constitucional – para que os diversos actos de validação dos diplomas, como a assinatura, a promulgação pelo Presidente e a referenda do primeiro-ministro possam ser todos feitos digitalmente.

“Será o exemplo, ao mais alto nível dos órgãos de soberania, de aposta na sociedade digital”, defendeu o deputado Jorge Lacão aos jornalistas no final da conferência de líderes desta quarta-feira, dedicada ao grupo de trabalho do Parlamento digital. “Vamos apostar numa maior participação nas redes sociais, com o objectivo de podermos sensibilizar um público mais vasto através das redes, com informações relevantes produzidas na AR, através de notícias, agendamentos e matérias aqui em debate”, descreveu.

Jorge Lacão contou que todas as propostas feitas pelo grupo de trabalho que coordena foram aprovadas por unanimidade pelas bancadas parlamentares e que as alterações começarão a ser visíveis para os cidadãos a partir de Outubro. Nessa altura estará pronta a modernização do site do Parlamento, para o tornar mais acessível e com mais conteúdos. O objectivo é que a Assembleia da República tenha uma presença mais forte na internet, através do site, mas também nas redes sociais. Para além da TDT e de ser transmitido no site, o canal Parlamento vai também apostar na presença no YouTube de forma a poder ser acompanhado nos smartphones.

E quanto vai custar tudo isto? Jorge Lacão recusou entrar em questões financeiras, deixando essa área para a administração do Parlamento. “Muito deste trabalho será feito dentro da Assembleia, mas esta nova dinâmica implica um reforço dos serviços”, realçou, acrescentando ser necessário investir em algum equipamento. “Tenho a garantia de que há cobertura financeira” para as propostas, afirmou o deputado. “É desejável que possa ser tudo concretizado até ao final do ano”, acrescentou.

O grupo de trabalho propõe que seja criado um gabinete de comunicação para tratar da produção dos conteúdos para o site e do canal Parlamento para as redes sociais, e também será preciso comprar equipamento para alargar a cobertura, pelo canal, dos trabalhos de todas as salas das comissões parlamentares e de alguns grupos de trabalho.

Este esforço de transparência da vida parlamentar incluirá também a actividade dos deputados. Além das faltas, das intervenções, do registo de interesses e do trabalho parlamentar feito na AR que já é possível consultar na área relativa a cada deputado, serão também divulgados todos os votos individualizados dos deputados e, no seguimento das alterações legislativas que estão em discussão na comissão eventual da transparência, deverá ser também disponibilizada a declaração de património e rendimentos que têm que entregar no Tribunal Constitucional.

O Parlamento irá também investir numa forma de tornar digital o voto para a eleição dos órgãos externos à Assembleia – como o caso da ERC ou do CES -, mas mantendo o sigilo.

No caso da digitalização dos processos das petições, ILC e IRP, é preciso criar as plataformas que suportam a entrega e subscrição online, como acontece, por exemplo, no Parlamento Europeu. Será uma concretização faseada uma vez que implica procedimentos cuidadosos devido à necessidade de garantir a confirmação da identidade dos subscritores. Jorge Lacão admite, no entanto, que “a capacidade de controlo [da identidade] não é absoluta”, mas em vez de se recorrer ao uso de bases de dados, este controlo será feito apenas através da confirmação via email.

Imagem de topo (“e o burro sou eu?”): o burro Jeremias, por Jorge Pinheiro, “blog” Expresso da Linha.