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É verdade, leram bem: o “cartão de eleitor” foi extinto e o recenseamento eleitoral passou a ser automático mas os dados do cartão extinto voltam a ser necessários para subscrever uma ILC.
Mas… como é isto possível? E porquê?
Diz-nos o Dr. Jorge Lacão que, aparentemente, é possível um cidadão ter mais de 18 anos e não estar recenseado… sendo que, como se sabe, a faculdade de subscrição de uma ILC está reservada a cidadãos nacionais devidamente recenseados. Deste modo, para excluir a remota possibilidade de uma ILC ter um subscritor maior de idade mas não recenseado, eis que regressa o nº de Eleitor.
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A Lei 17/2003, na sua primeira forma, exigia os dados de eleitor; a Lei Orgânica 1/2016 aboliu esse requisito (ver Art.º 6.º, alínea c) ; agora o Projecto de Lei n.º 527/XIII (ver o mesmo Art.º 6.º, alínea c) repõe a exigência do número de eleitor.
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Portanto: visto que o cartão de eleitor foi extinto, o Parlamento deixou de o exigir a partir de Agosto de 2016 mas o “Grupo de Trabalho para o Parlamento Digital” volta a exigir em Julho de 2017 os dados daquele mesmo cartão extinto na subscrição de qualquer ILC.
E há mais, como se isto não bastasse.
Além de repor a exigência obsoleta, o “Parlamento Digital” exige ainda a data de nascimento do subscritor de uma ILC. O que significará, porventura, segundo esta estranha lógica, que poderão existir em Portugal eleitores recenseados mas que são ainda menores de idade. E que, além destes, também há portugueses maiores de idade que não estão inibidos de votar mas que não estão recenseados. Bem, pode ser, deve haver aí uns 4 ou 5 casos desses em 14 ou 15 milhões.
Seja como for, deduzo de tão peculiar colecção de requisitos, redundantes e contraditórios em simultâneo, que tocará exclusivamente à Comissão Representativa de uma ILC a incumbência de exigir, nas subscrições por via electrónica, além do nome completo do subscritor, o seu número de identificação civil, data de nascimento e número de eleitor, bem como um endereço de email válido. E à mesma CR caberá também, é claro, e muito justamente, o estabelecimento de mecanismos técnicos de segurança, conferência e validação (ou invalidação) das subscrições.
Do que resulta que, então, não terá talvez, digo eu, qualquer interesse que se mantenha a formulação do número 3 do Artigo 6.º da Lei 17/2003: «A Assembleia da República pode solicitar aos serviços competentes da Administração Pública, nos termos do Regimento, a verificação administrativa, por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos subscritores da iniciativa legislativa.»
“Pode solicitar”? Podia solicitar. Assim sendo, já não faz sentido que a Assembleia da República solicite coisa alguma “aos serviços competentes“, muito menos “a verificação administrativa, por amostragem”, já que todas as subscrições terão de ser duplamente, triplamente, infinitamente validadas a montante, a priori, antes da entrega de toda a documentação no Parlamento. Será quiçá o fim do pesadelo — e o início do sonho — dos infelizes funcionários parlamentares a quem dantes era entregue tão mortalmente aborrecida empreitada de conferência. Ninguém merece, de facto.
Mistérios insondáveis terão presidido ao certamente suado labor dos ilustres tribunos do Grupo de Trabalho que tão complicados, confusos, bizarros resultados despacharam. Amarga ironia que tão burocráticos despachos tenham saído precisamente de um grupo parlamentar que se intitula como sendo “para o Parlamento Digital”. Convenhamos que o trabalho não lhes saiu lá muito bem e que de digital o dito pouco ou nada teve.
Não agoiremos, porém, nem exorbitemos nas especulações: como está em curso uma única, não seria muito difícil deduzir qual é, ao certo, a ILC afectada pela reposição da exigência anteriormente tornada obsoleta, mas por certo a explicação não há-de ser uma coisa assim tão simples. Isto é só a minha modesta opinião, bem entendido.
“Núvens”, com acento??