Mais uma reversão ortográfica, salvo seja. Mesmo após todos estes anos desde que nos caiu em cima a malaquenha maldição, as pessoas continuam a acordar para a realidade — ou seja, vão desacordando.
Este é outro caso flagrante: oito anos depois, um “blogger” que apoiara entusiasticamente o AO90 declara agora que o rejeita categoricamente e rebate, um por um, todos os argumentos que ele próprio tinha enumerado para sustentar esse apoio.
É natural. Esmoreceu no entusiasmo, primeiro, faliram os argumentos, depois, e volatilizou-se-lhe o apoio, por fim, porque a realidade é mais sólida do que uma parede; mas, felizmente, não partiu a cabeça quando bateu com estrondo na dita parede. Pelo contrário, a pancada, digo, o embate, terá sido com certeza absolutamente indolor, uma espécie de despertar súbito e clarividente.
Como por definição acontece quando um chorrilho de mentiras esbarra e espatifa-se contra factos concretos, dúvidas feitas em cacos transformam-se — suave milagre — em sólidas convicções.
Em 2009 o Mark dizia “sim”, em 2017 o Mark diz — definitivamente — Acordo Ortográfico: Não!
E diz muito bem. É esta a nossa identidade.
Ainda o Acordo Ortográfico.
O assunto está praticamente dado por encerrado entre todos, não obstante ainda proliferarem movimentos que se lhe opõem. Entre os organismos estatais, foi adoptado; órgãos de Comunicação Social e demais imprensa, de igual modo, gradualmente o implantaram, com uns quantos que se recusam. Há individualidades que lhe fazem frente, e eu, um fiel apoiante, vejo-me do outro lado. Não farei militância anti-AO, se bem que lhe retirei todo o apoio. Torna-se oportuno contextualizar.
Quando o AO entrou em vigor em Portugal, adoptei-o na minha escrita, inclusive no blogue. Por pouco tempo, porque cedo me dei conta da minha impossibilidade em adaptar-me às novas regras, ainda que as tenha, por conta própria, estudado. Esteticamente, foi-me impossível. Mantive, entretanto, o meu apoio ao Acordo. Perfilhei da maioria das razões invocadas pelos seus defensores, as quais expus aqui no blogue – tenho textos escritos, antigos, sobre esta matéria; por 2011, inclusive, lerão textos meus com a ortografia reformada. O principal argumento prende-se à disparidade entre as normas portuguesa e brasileira. Consoantes mudas, acentuação gráfica, sobretudo, o que levava, numa primeira análise, a que os leitores se apercebessem das divergências quase incomportáveis num mesmo idioma, divergências essas que o enfraqueciam no plano internacional, designadamente na hora de um aluno escolher entre qual norma aprender. Anos depois, continuo a considerar este argumento como aceitável e pertinente. A Língua Portuguesa queda enfraquecida com tamanhas, embora não abismais, diferenças, que existem nalguns idiomas, como no inglês, mas que não existem noutros, como no castelhano, sendo que o português goza de bastante menos prestígio do que ambos.
O que terá mudado? Sucintamente, o modo como encaro o Acordo. Continuo a ser partidário de uma uniformização, opondo-me veementemente ao processo em curso de simplificação. O Acordo Ortográfico de 1990 descaracteriza o idioma. A raiz etimológica, em detrimento do critério meramente fonético, sofreu um duro golpe. O primeiro foi-lhe dado justamente por Portugal, em 1911. Não sou um purista; todavia, não posso compactuar com este atentado ao idioma. Uniformização ortográfica, sim; AO de 1990, não.
Também mudou a minha percepção política. Portugal viu-se quase que compulsivamente obrigado a ceder. Propôs-se, em 1945, que o Brasil reintroduzisse as consoante ditas mudas. O Brasil rejeitou. Quarenta e cinco anos depois, foi Portugal que se comprometeu em eliminá-las. Houve uma pressão desmedida sobre Portugal, que ainda é, muito embora geográfica e demograficamente menor, o país que viu nascer a Língua Portuguesa, com a Galiza – o idioma surgiu justamente na actual Galiza e no norte de Portugal, na Gallaecia. Outrossim, o Acordo serve propósitos duvidosos de uma parte da esquerda brasileira: simplificar, custe o que custar, porque, segundo defendem, ” o português é difícil ” (soube de um plano que preconizava, sem mais, a abolição de toda a acentuação gráfica). Seria a lógica de um inglês simples aplicada a um idioma romance. Talvez num futuro acordo, não? Pois não. Jamais. O mercado lusófono em África e na Ásia, em Timor, foi bastante sedutor às editoras do país irmão. O Acordo Ortográfico, sendo adoptado pelos PALOP e por Timor, derrubaria todos os entraves à comercialização de livros brasileiros na África Lusófona. É uma especulação válida, um tanto ou quanto demagógica, aceito, mas não é, de longe, o que me fez recuar. É apenas um exemplo dos interesses que se movimentam à retaguarda de um acordo aparentemente desprovido de qualquer outra intenção que não a defesa do idioma uno e coeso.
O Acordo Ortográfico aproveita ao Brasil. Aproximou-se a ortografia da norma brasileira e simplificou-se. As mudanças no Brasil foram mínimas. Aboliu-se o trema e pouco mais. Não houve uniformização harmoniosa e razoável; houve, sim, um país que se soube impor sobre os seus parceiros. Mérito do Brasil. Inteiramente. Ora, não me é permitido transigir com um cenário que em nada dignifica as nossas relações no seio da CPLP e, menos ainda, a Língua Portuguesa, que considero um património imaterial de todos os lusófonos, não só dos brasileiros e dos portugueses, verdadeira pátria para mim, citando Pessoa.
Serei sensível a todos os projectos equitativos de uniformização que não comportem lacunas e casos omissos como este (des)acordo (saberão, certamente, que o Acordo não uniformizou vocábulos como Humidade, em Portugal, Umidade, no Brasil, ou, citando outro exemplo, Beringela, em Portugal, Berinjela, no Brasil). Prevê duplas grafias, cá e lá. Surreal. Em breve, nem saberemos como escrever. O caminho para a arbitrariedade linguística está a descoberto. Há casos em que a consoante é ou não articulada. Aspeto e Aspecto, nomeadamente. Em Portugal, há quem a pronuncie, há quem não a pronuncie. O que dizer de Recepção, que no Brasil assim se escreve, e que em Portugal passou a Receção? Paradoxalmente, em razão do critério fonético, eis um vocábulo em que o Acordo veio desarmonizar. Receção que, diga-se, corre o risco de ser confundida com Recessão, de valor semântico totalmente distinto. Não sairia daqui.
Não se brinca com uma língua comum a povos, com o idioma que aprendemos desde o berço, que utilizamos para exprimir os nossos sentimentos, medos, estados de espírito. O idioma faz a nossa identidade, liga-nos a uma sociedade, a uma nação. No limite, distingue-nos de croatas e de mongóis. É um elemento para ser encarado com toda a seriedade, e não pode ficar à mercê de conveniências e de politiquices baratas.
[Transcrição integral de “post” publicado no “blog” As Aventuras de Mark em 05.09.17. Destaques meus. Adicionei “links”.]