Como vimos, a ideia peregrina da “revisão” do AO tem barbas, salvo seja, assim como tem imensos apêndices capilares a ainda mais peregrina ideia que motiva as sucessivas “revisões” dela mesma, a ideia básica, primordial: os “acordos ortográficos” a granel. Nós por cá, em absoluto record mundial, vamos em oito mexidas na ortografia — oito! Isto se não me enganei na contagem, bem entendido, que ele há historiais para todos os gostos, isto com a ortografia portuguesa é uma alegria, um acordo ortográfico por dia nem sabe o bem que lhe fazia.
Lá dizia o Dantas, em 1929, “ah, e tal, aumentando de dia para dia o interesse que à língua portuguesa consagram as nações estrangeiras, não será natural e legítimo que lhe consagremos, também, um pouco mais de interesse em Portugal?”
Bom, sejamos rigorosos, o Dantas nunca disse “ah, e tal”, o Dantas disse só o resto daquela estranhíssima frase em forma de pergunta. Uma das do imenso arsenal de asneiras de que se servia amiúde para tentar justificar o injustificável, ou seja, a “necessidade” de “uniformizar” a língua portuguesa. Se bem que diferisse do seu émulo actual (Malaca Casteleiro, de sua graça) num aspecto, porém: ao contrário deste, nosso Júlio não pretendia substituir na íntegra e literalmente a ortografia portuguesa pela cacografia brasileira, preferindo uma plataforma de entendimento, isto é, que a parte portuguesa mostrasse ao menos um mínimo de honradez nas negociações com os brasileiros. E isto mesmo tendo ele, nosso Júlio, o Dantas deles, dupla nacionalidade, portuguesa e brasileira, mas ao que parece tendo ele também um pouco de vergonha na cara
A isto se resumem, no entanto, as diferenças entre aquele avôzinho das “reformas ortográficas” e o seu netinho acordista — já com boa idade para ter juízo mas pelos vistos o acordismo é um achaque mental “derivado a” ideias infantis.
As similitudes entre a remota e a actual gerações de “reformistas” obsessivos, a 70 ou 80 anos de distância, são evidentes e são inúmeras: vimos isso mesmo quanto à “necessidade” de um “acordo ortográfico” e à subsequente “necessidade” de uma “revisão” imediata do dito e vimos também que, em 1929 como em 2017, bastava então e basta agora produzir um “vocabulário ortográfico” para que a língua portuguesa no mundo se expanda, e tal e tal e não sei quê.
Mas há muito mais, claro. Os pilares fundamentais do acordismo, todos eles feitos de palha e colados com cuspo, são hoje exactamente iguais aos que Dantas se entretinha a impingir aos seus contemporâneos nos anos 20, 30, 40 e 50 do século passado.
Em certa palestra que o ilustre académico se dignou debitar, no edifício no Salão Nobre da Ordem dos Advogados, a S. Domingos (Lisboa), a 7 de Setembro de 1945, deixou Dantas bem patente o seu fascínio pelo Brasil, pelo gigantismo do Brasil, pelos muitos milhões de habitantes do Brasil. Uma admiração exacerbada a roçar a bajulação que o mesmo exibira, com o mesmo pudor que Malaca manifesta, ou seja, nenhum, no discurso de 1929 já citado.
Ah, o Brasil, o Brasil, os “milhões” (bem, depende do tipo de “milhões”) do Brasil, a “quinta língua mais falada do mundo” por causa dos “milhões” do Brasil,
Mas onde é que a gente já leu estas patacoadas, hem?
Malaca Casteleiro, 28.05.2015
«Sem a aprovação deste acordo, em 1990, Malaca considera que se corria o sério risco de termos hoje oito ortografias diferentes, depois do processo de descolonização e de, consequentemente, a língua portuguesa deixar de ser das mais faladas do planeta. E é com muito orgulho que diz que há “250 milhões de pessoas a falar português”, que é falada em quatro continentes e que é mesmo o idioma mais usado no hemisfério sul.»
Júlio Dantas, 07.09.1945
«(…) é sempre, por mais que a sua expressão varie, a mesma língua portuguesa, património colectivo que o povo criou, que os letrados fixaram, que os séculos enobreceram, que na Renascença — língua imperial! — se cobriu de um manto de púrpura, e que o Brasil herdou para lhe assegurar connosco a expansão e a imortalidade.»
Júlio Dantas, 04.04.1929
«(…) a unidade da língua portuguesa falada, nas cinco partes do mundo, por quase sessenta milhões de almas, mas não está devidamente assegurada a própria unidade da língua portuguesa falada e escrita em Portugal. Essa carência de uniformidade é particularmente sensível no domínio ortográfico.»
Além disto dos “milhões” (“de” ou “dos” brasileiros, depende da perspectiva) os dois artistas aqui em foco igualmente comungam, unidos pela mesma crença no II Império brasileiro, de outras fézadas similares: que ingleses, americanos, franceses e espanhóis são uma cambada de burros, nem sabem o que é bom, deviam fazer também “acordos ortográficos” para o Inglês, o Francês e o Castelhano; que os estrangeiros embirram solenemente com as “duas grafias oficiais” (mentira descarada) do Português; que a “culpa disto tudo” é integral e forçosamente da parte portuguesa porque “nós” não consultámos os brasileiros, coitadinhos, em 1911.