“A nossa língua ninguém pode comprar” [revista “Raia Diplomática”, 20.10.17]

“Ki Nobas”?

Pergunta um luso-descendente do Bairro Português de Malaca a querer saber novidades.

Esta é uma das expressões que oiço habitualmente. Um pouco do nosso Portugal longínquo e flutuante, herança portuguesa de uma outra geração.

Um dia, uma amiga chinesa visitou-me em Malaca e levei-a a conhecer a comunidade. Cruzámo-nos com o Senhor António, que caminhava com o seu carrinho de mão e as suas redes de pesca ao longo da rua Teixeira. Apresentei-o falando em inglês, dizendo que era o meu amigo António. A minha amiga disse “Hello Anthony”, ao qual ele respondeu “My name is António, Portuguese name” apertando a mão e sorrindo.

A identidade de um povo, assim como de uma comunidade, sente-se na alma das pessoas quando convivemos com elas no dia-a-dia, sente-se na sua vontade de querer ser, na forma como reagem e interpretam a sua história e como a projectam no futuro.

Na isti parti di mundo”, deparei-me com várias gerações de pessoas orgulhosas da nossa identidade. O senhor que canta o fado, a criança que joga ao berlinde, o jovem que dança folclore, a senhora que confecciona bolos tradicionais, o senhor da mercearia.

Conheço gente com verdadeira alma lusitana sem nunca terem visitado Portugal. Sentem-se portugueses, sem renegarem a sua nacionalidade Malasiana. Houve uma evolução diferente do Português na comunidade luso-descendente de Malaca, uma evolução que resultou da simples vontade e necessidade de querer comunicar na língua materna. Foi esta vontade, este sentir, esta necessidade de se identificarem com os seus antepassados que permitiu que ainda hoje se possa ouvir em Malaca: “Sou Português”.

Existem alturas em que a emoção é muita ao ouvir estas pessoas a afirmar serem portugueses. Ao princípio achamos estranho, mas depois os nossos compatriotas explicam que a identidade portuguesa não é coisa que se perca porque nasceu com eles.

Oiço histórias que não vêm nos livros. Conservam-se expressões de um Português dito antigo, como “muita mercê” em vez de obrigado, “pedra friu” em vez de gelo, “pintura” em vez de fotografia, “cavalo di ferru” em vez de bicicleta.

Todas estas expressões, entre outras, foram e continuam a ser transmitidas oralmente de geração em geração entre as famílias luso-descendentes sem qualquer tipo de imposição. Até aos dias de hoje (século XXI), com o decorrer do tempo, o seu vocabulário tornou-se bastante limitado e a sua pronúncia tem sido modificada.

Passados 500 anos, em cada casa existe uma história, em cada casa existe um herói português, em cada casa existem várias famílias luso-descendentes, em cada pessoa existe o saudosismo, a saudade ou a “saudadi”.

Vivo numa destas casas e aprendi que estar “longe de casa” não significa apenas deixar o espaço físico. Só o sabemos quando realmente o experienciamos.

Eu por cá vou continuar a lembrar a todos quem somos e onde estamos.

Cátia Bárbara Dias Candeias

[Transcrição integral, incluindo imagem e destaques a “bold”, de artigo, da autoria de Cátia Bárbara Dias Candeias, publicado na revista “Raia Diplomática” de 20.10.17.]

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