Morra o Dantas, morra, pim! (1)

É realmente espantoso. As mesmas ideias peregrinas colocadas nos mesmíssimos, falaciosos  termos, com 88 anos de intervalo, entre 1929 e 2017.

Olga Rodrigues descobriu o opúsculo original e publicou um “recadinho aos crentes” (excelente designação!) na rede social Facebook referindo-se, no caso, à estafada e muito “atual” tese da “revisão” do AO.

RECADINHO BREVE AOS CRENTES NA BONDADE DE UMA REVISÃO DO AO90

Não é novo nem inédito. O Acordo Ortográfico de 1911 também foi alvo de duas revisões que só afastaram ainda mais a língua portuguesa da sua matriz original.

Existe uma “Comissão do Dicionário”, eleita na assemblea geral de 2 de Março de 1911, comissão que reviu a reforma ortográfica então decretada(…) e temos de fazer uma nova revisão da reforma de 1911, alterada já, em alguns pontos, pela Portaria de 29 de Novembro de 1920.
(Cf. Dantas, Júlio – A Unidade da Língua Portuguesa: Discurso pronunciado na Sessão da Assemblea Geral da Academia das Sciencias, de 4 de Abril de 1929 – Lisboa: Portugal – Brasil – Sociedade Editora, 1929, pp. 21/22.)

Passando por cima do facto de ter sido nomeada em Março de 1911 uma comissão para rever algo que só foi aprovado a 2 de Setembro do mesmo ano ( cf. pp. 11/12, Idem), vemos que nada disto é novo.

Leiam, se puderem, o texto de Júlio Dantas atrás citado e verão, de forma arrepiante, como tudo aquilo se assemelha com os discursos sobre o AO90. Foi publicado em 1929. Tem, portanto, 88 anos. Poderia ter sido escrito hoje.

E não, não se trata de incautos a repetir velhos e estafados erros. Trata-se de uma repetição consciente e propositada de uma velha fórmula que já causou efeitos tão corrosivos à estabilidade etimológica da Língua Portuguesa. Da destruição do nosso mais nobre e valioso património, da nossa identidade, portanto.

Olga Rodrigues

Júlio Dantas, um escritor abaixo de sofrível com mais obras publicadas do que leitores dessas  obras, ficou conhecido por ter sido — muito justamente — alvo de chacota por parte dos intelectuais decentes da sua época. Quem não associa imediatamente o nome à finíssima troça que dele fez Almada Negreiros no seu (brilhante) “Manifesto Anti-Dantas“?

Pois foi este mesmo Dantas, nomeado por Oliveira Salazar para Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, um dos maiores defensores da tal “unidade da língua portuguesa” e, por conseguinte, o mais frenético promotor de acordos ortográficos em série mai-las respectivas e igualmente sucessivas “revisões”.

Foi, portanto, uma espécie de Malaca Casteleiro da primeira metade do século passado, além de seu mentor espiritual, digamos assim, e também precursor ou inspirador do malfadado (e mal parido) AO90. Ambas as personagens debitam, separadas por décadas no tempo mas sem um milímetro de distância na argumentação, os mesmos pressupostos, a mesma ânsia alucinada por um putativo II Império — “lusófono” por fora, brasileiro por dentro.

O que Dantas diz no discurso de 1929 (e que repete, por exemplo, em 1944, na Ordem dos Advogados) são exactamente as mesmas patranhas de que Malaca y sus muchachos andam por aí a aliviar-se ainda hoje.

De facto, o extraordinário opúsculo citado por Olga Rodrigues não se fica , evidentemente, pela treta da revisão, a qual, como se vê, é uma “necessidade” velha e relha. O documento de Dantas enumera, ponto por ponto, todos os restantes dislates que papagueia Malaca. É arrepiante, de tão actual, ler aquilo.

Por exemplo, sobre a “necessidade” de um “acordo ortográfico”, o que dizia Dantas em 1929?

«Nestas circunstâncias, ocorre perguntar: aumentando de dia para dia o interesse que à língua portuguesa consagram as nações estrangeiras, não será natural e legítimo que lhe consagremos, também, um pouco mais de interesse em Portugal?» (pg. 9)

«Com efeito, o que pensará e o que dirá, perante a inexplicável diversidade de grafias ao mesmo tempo, usadas nos livros e nos jornais da nossa terra, um universitário de Londres, de Tóquio ou de Hamburgo, que neste momento procure, laboriosamente, adquirir o conhecimento da língua portuguesa?» (pg. 13)

E o que diz Malaca em 2017?

«Porque é que houve a necessidade de fazer um novo Acordo Ortográfico?»
«Fundamentalmente porque havia duas ortografias oficiais para a língua portuguesa, a brasileira e a portuguesa. Do ponto de vista da promoção internacional da língua, era prejudicial. Numa universidade ou instituição estrangeira onde se ensine o português, qual era a ortografia que se ia ensinar? A de Portugal? A do Brasil? E depois houve outra razão fundamental: em 1975, as colónias portuguesas tornaram-se independentes e adoptaram a língua portuguesa como língua oficial. Corríamos o risco, porventura, de se caminhar para sete, oito ortografias diferentes.»
[Observador, 13.02.17]

E sobre o “grande vocabulário ortográfico”, o que dizia dantes Dantas?

«Penso que nos será necessário optar por um de dois caminhos: ou iniciar desde já os trabalhos de organização de um grande dicionário etimológico e histórico da língua portuguesa, renovando, em bases lexicográficas modernas, as malogradas tentativas do ilustre Pedro José da Fonseca no século XVIII e do eminente Latino Coelho no século XIX, labor gigantesco que não se concluirá na vida de nenhum de nós, mas que é preciso principiar um dia; ou, tendo em consideração a necessidade de uma intervenção rápida, limitarmo-nos, por agora, à elaboração de um dicionário de proporções mais modestas, senão de um simples vocabulário ortoépico, o que — inútil acentuá-lo — de modo algum prejudica a ulterior organização do grande Dicionário, antes constituirá uma das suas operações preliminares indispensáveis.» (pg. 14/15)

E o que diz agora Malaca agora sobre o distinto calhamaço?

«Na altura em que discutimos e aprovámos este acordo, tínhamos admitido algum aperfeiçoamento. É como a legislação – há sempre alguma incongruência, alguma dificuldade, mas isso pode ser resolvido através do Vocabulário Ortográfico Comum, que está a ser elaborado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa.» (…)

«Por exemplo, uma aparente incongruência: “cor-de-rosa” e “cor de laranja”. “Cor-de-rosa” é com hífen e “cor de laranja” sem hífen. Isso já vinha de trás – “cor-de-rosa” toda a gente escrevia com hífen, “cor de laranja” era uma formação mais recente. Hoje, acho que devíamos ter tirado os hífenes. Ora, isso pode ser corrigido no Vocabulário Ortográfico Comum. É apenas um exemplo, que há outros. Acho que eles têm feito um bom trabalho, isso está a ser melhorado.» [Observador, 13.02.17]

(continua)

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