«O AO90 não é adoptado com seriedade em Cabo verde» [Abraão Vicente, Ministro da Cultura]

“O quotidiano em Cabo Verde é todo ele pensado, amado, sentido em crioulo”

A pretexto do “maior evento literário dos PALOP”, a Morabeza — Festa do Livro, que arranca a 30 de Outubro, o ministro da Cultura de Cabo Verde, Abraão Vicente, diz como tenciona alicerçar a literatura num país em que ela é sobretudo feita na música. E vinca o seu apoio à oficialização do crioulo.

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O facto de a criação literária cabo-verdiana ser essencialmente em português e toda a criação musical ser em crioulo, essa duplicidade, é essencial à maneira de ser cabo-verdiana?
A nossa identidade revela-se aí. Na Festa do Livro, o português vai ser a língua de trabalho, porque vamos ter convidados de Angola, Moçambique, Portugal, Brasil. Mas o nosso quotidiano é todo ele pensado, amado, sentido em crioulo, por mais que as instituições se esforcem. Uma das primeiras medidas do novo governo foi o ensino do português como língua segunda, no sentido exactamente de nós interiorizarmos o porquê de o ensino e a fluência do português estarem a perder terreno. Porque o crioulo domina o dia-a-dia, domina a música, domina as próprias instituições. O parlamento cabo-verdiano funciona praticamente em crioulo. Há uma força identitária e aqui entra o debate que vai vir com a revisão da Constituição: oficializa-se ou não o crioulo?

Qual é a sua posição, nesse debate?
Eu, como intelectual e como alguém que vem do campo artístico [Abraão Vicente é artista plástico], sou absolutamente a favor da oficialização do crioulo e da sua imediata implementação. A própria comissão de línguas existente em Cabo Verde recomenda a oficialização paulatina: simbólica, numa primeira fase, dando dignidade à língua materna; e, numa segunda fase, fazendo com que os linguistas nos ensinem a fazer a escrita e a criar um processo. Mas não acredito que tenhamos de chegar ao ponto de padronizar o crioulo, porque isso seria perder grande parte da nossa identidade. Sou contra a padronização, contra um sistema de escrita que elimine os sotaques do crioulo.

Mas isso não contradiz completamente a lógica invocada para justificar o acordo ortográfico da língua portuguesa, que Cabo Verde assinou?
O acordo ortográfico não é adoptado com seriedade em Cabo Verde. Oficialmente já o adoptámos, os documentos oficiais do governo, das instituições, respeitam o acordo, mas também há o fechar dos olhos, o conviver com quem não aceita e não quer. Não houve um processo de ensinamento.

Mas o acordo impõe uma padronização e acabou de dizer que é contra a padronização da ortografia do crioulo num só país, Cabo Verde. Não é o contrário dessa lógica?
Concordo. Até porque na nossa comunidade, a dos países falantes do português, não somos tão próximos quanto o discurso diz que somos. Quem conhece Angola, Moçambique, Brasil, Portugal, Cabo Verde sabe que os processos linguísticos que poderiam levar à padronização estão muito longe de ocorrer. Não podemos confundir aquilo que é a vida lisboeta, onde se encontram todas as culturas lusófonas, com a vida na Praia, no Moxico, em Luanda ou no Rio de Janeiro. Inclusive temos de ter a humildade de perceber que Portugal ou Cabo Verde perdem-se quando chega o universo brasileiro ou o angolano. Pensar que num dia, próximo, nos iremos misturar pela língua é mais uma daquelas ficções que nos impedem de dar os passos que devem ser dados para termos uma verdadeira comunidade de países da língua portuguesa.

Voltando à Morabeza: o intercâmbio que aqui se propõe é para continuar, para ampliar?
Sem dúvida. E não só na língua portuguesa. O que digo é que precisamos de concretizar a CPLP e o espaço da lusofonia. Enquanto continuarmos a fazê-lo com encontros formais entre ministros e chefes de Estado, isso jamais acontecerá. No entanto, a CPLP acontece no B.Leza, nos espaços públicos. Então no próximo ano já vamos ter autores senegaleses e nigerianos. E a nossa ideia é fazer essa ampliação. A embaixada da China também já nos propôs trazer autores chineses, já temos tradução. O português é um bom pretexto para o primeiro ano, vamos ver qual é o resultado.

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[Jornal “Público”, 24.10.17. “Links” e destaques meus.]

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