A Língua Portuguesa não é um objecto que se possa trocar, comprar ou vender. Os portugueses que a usam como ferramenta de trabalho, ao menos esses, não estão em saldo. Nem apreciam particularmente que alguns salteadores e traficantes lhes tentem roubar a enxada, essa alfaia singular com que revolvem o chão da pátria que lhes deu o ser e lhes dá o pão. E que também serve, como qualquer sachola honrada, para dar com ela na cabeça dos meliantes. [‘O aborto ortográfico: pontas soltas e roubos de catedral‘, 16.04.2008]
O AO nem é acordo, porque num acordo se pressupõe cedências de ambas as partes e neste houve apenas de uma, nem é ortográfico, pela simples razão de que nega e renega o próprio conceito de ortografia. [jornal “O Diabo” (entrevista), 20.12.2011]
A finalidade deste “acordo” político é que uma das seis ex-colónias, sul-americana, submeta a sua ex-potência colonizadora, europeia, e as demais ex-colónias africanas desta, a uma forma de neo-imperialismo cultural que se consubstancia na “adoção” ditatorial de uma “ortografia única”: a brasileira. [‘Anatomia da fraude‘, 02.07.2017]
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Mas será “só” isto mesmo? Trata-se apenas de abater umas quantas “consoantes mudas” ou afinal pretende-se deitar abaixo, demolir outras coisinhas?
Quando o actual Presidente da República proclamou, em 2008, que “Portugal tem de lutar para dar a primazia ao Brasil” e quando, em 2015, reforçou essa “ideia” defendendo um “acordo militante”… queria ele dizer o quê, ao certo?
Bom, assim ao certo, ao certo, parece-me não haver nestas declarações qualquer tipo de subtileza que dê lugar a dúvidas: o que este Presidente quis dizer (como o anterior) é que sim, senhor, existem de facto mais umas quantas coisinhas a abater. O “acordo ortográfico” serve meramente, por assim dizer, como cabo para empunhar o camartelo.
Ao ritmo actual dos trabalhos de demolição, presumo que dentro de dois ou três anos, o mais tardar, não reste nas plataformas e nos serviços de Internet o mais remoto vestígio da ortografia do Português-padrão. E não “só” isso, evidentemente, e não “apenas” isso com efeitos retroactivos, como também toda a Internet “lusófona” será quase integral ou exclusivamente brasileira — na redacção e na terminologia mas também nos conteúdos.
Qualquer pesquisa genérica via Google devolve já, sempre à cabeça e sempre por sistema, resultados de “sites”, textos, produtos, serviços brasileiros.
Quanto mais curto for o critério de busca, maior a probabilidade de as primeiras sugestões serem de coisas… brasileiras, pois claro. Como neste caso***, procurando “hino” no YouTube.
Ah, e tal, dirão alguns, mas isso sempre foi assim.
Não, não foi, digo eu. E já o dizia, comprovando o facto com amostras, há quase uma década.
Apesar de o passado estar a ser frenética e metodicamente rasurado, mesmo com o sistemático apagamento da memória — e não apenas da virtual — ainda é possível reconstituir alguns pedaços. Lá iremos, pois então.
De facto, sete anos passados desde que entrou em vigor, podemos agora fazer um diagnóstico fidedigno do embuste a que se convencionou chamar “acordo ortográfico”, consistindo este basicamente na “adoção” da desortografia brasileira.
E podemos agora também constatar, num misto de estupefacção e horror, que as consequências dessa manobra neo-colonialista de sentido inverso vão muito para além de meras questões ortográficas, lexicais ou gramaticais lato sensu: trata-se, em suma, de eliminar uma Cultura e substituí-la por outra.
Nos letreiros e placas toponímicas, na publicidade, em artigos de jornais e revistas, nas legendagens de filmes e nas traduções de livros.
Na Internet, em quase todas as plataformas, sistemas e serviços, do Google à Wikipedia, do Explorer ao Firefox, do Windows ao Facebook, tudo está já (e sempre, sempre, sempre com efeitos retroactivos, isto é “corrigindo” o passado) em puro e duro “brasileiro”.
Na comunicação quotidiana, por escrito (nas chamadas “redes sociais”, via correio electrónico, em documentos oficiais, na administração pública, nos serviços, nas empresas) e até oralmente, a “língua brasileira” — com o auxílio paralelo da estupidificação maciça aportada pelas “telenovelas” a granel, seitas religiosas brasileiras, canais por cabo brasileiros e estações de rádio brasileiras, importação em massa de jogadores de futebol e de “diretores” brasileiros — vai paulatinamente substituindo aquilo que antes era a Língua Portuguesa por uma espécie de crioulo aldrabado que não é nem uma coisa nem outra mas que serve na perfeição para os fins em vista: justificar pelo “fato consumado”, apagando da História todo e qualquer vestígio que possa comprometer a tese, que o “insignificante” Portugal não passa hoje em dia de uma simples (e irrisória) excrescência do “colossal” Brasil.
Tudo isto, este deprimente “espetáculo”, esta horripilante pantomina, com a alegre e divertida aquiescência de muitos portugueses, com a mercenária, boçal, imbecil militância de alguns outros, com o “suporte científico” de meia dúzia de vendidos e com o apoio feroz de um ou dois Vasconcelos para os quais não existe em Portugal janela a uma altura suficiente de onde se lhes possa fazer uma defenestração decente.
(continua)
***Situação no momento em que os dados ou a imagem foram obtidos. Podem existir alterações a posteriori nos respectivos “sites.
[Os “links” associados a imagens abrem em nova “janela”. Imagem (do camartelo) copiada do “blog” Olho de Gato.]