As generalizações são, por definição, terreno perigoso: podemos incorrer no pecado da soberba e cair na tentação de trocar o arquétipo pelo estereótipo ou de promover algo que ocorre regra geral a fenómeno obedecendo a uma pretensa lei universal.
Existem, contudo, traços distintivos geralmente (e pacificamente) aceites como características típicas: por exemplo, os destros distinguem-se dos canhotos porque todos estes são canhotos, nem de propósito; mas tal característica — individual e colectiva — não deve nem pode ser confundida com uma qualquer imagem estereotipada e caricatural.
Como aquela que, também por exemplo, brasileiros traçam do “português”: chama-se invariavelmente Manoel, é padeiro, está casado com uma tal Maria, senhora que jamais apara seu farfalhudo bigode e que passa o tempo todo a dançar com “Seu Manoel” o “Vira”.
https://youtu.be/PwXplj3ssNs
Não sei se haverá alguma amostra de achincalhamento deste tipo — verdadeiramente racista — em sentido contrário, ou seja, presumo que não exista uma única gravação de portugueses aos saltos a guinchar insultos contra o povo brasileiro.
Não, ora cá está uma característica geral dos portugueses, nós gostamos mais de gozar connosco mesmos. Por vezes até gozamos com aquilo em que nos achamos os melhores do mundo e arredores: “o português tem muito jeito para as línguas”, dizem muitos com orgulho, do que se riem alguns outros com gosto.
Trata-se de outra forma de generalização abusiva, se bem que não incrivelmente estúpida, como aquela dos “Mamonas Assassinas” (raio de nome), mas ainda assim houve logo alguém que se lembrou de virar a gabarolice do avesso: o humorista Herman José, português de ascendência alemã, criou um excelente “boneco”, Lauro Dérmio de sua graça, para caricaturar o português sem jeito nenhum para falar “estrangeiro”.
Trata-se de um realizador de cinema cujo “jeito” para a Língua inglesa deixa um bocadinho a desejar. Sem mais demoras, letes luque éta treila.
Temos, portanto, por um lado a “falta de jeito” (Lauro, Sócrates, Mourinho, Soares) e por outro lado temos, além dos casos pontuais de inépcia individual na pronúncia, a própria incapacidade fisiológica dos falantes na articulação de certas sonoridades “alienígenas”, como nos já citados casos de chineses e anglófonos com os “érres” e de portugueses quanto à pronúncia do inglês “TH”.
Ora, se podemos delinear nesta matéria traços distintivos, de forma geral, genérica e prototípica quanto a chineses, americanos, ingleses e lusitanos, então porque não tentarmos ao menos espreitar o caso brasileiro? Haverá algum traço comum, deste mesmo ponto de vista, que se possa designar como “tipicamente brasileiro”?
Bem, talvez seja de pesquisar um pouco. Vejamos se os brasileiros dizem sobre isto alguma coisa de si mesmos.
Alguns trabalhos já foram realizados sobre o assunto e verificaram que, em grande parte do território nacional, predomina a variante vocalizada dessa consoante, ou seja, o /l/ em final de sílaba transforma-se em uma semivogal [w], formando, muitas vezes, um ditongo com a vogal do núcleo da sílaba. Sendo assim, palavras como mal e mau (ou vil e viu) confundem-se numa mesma pronúncia: mau e viu. Podemos, portanto, afirmar que ocorre um processo de neutralização entre esses dois fonemas quando esses ocorrem em final de sílaba.
Como podemos observar, há duas principais realizações do fonema na posição de coda. Uma que se denomina de velarizada […], mais próxima da lateral plena [l], e uma variante vocalizada [w].
Dialetalmente falando, a variante velarizada é própria do português de Portugal, ao passo que a variante vocalizada é uma marca bem clara do português falado no Brasil (SÁ, 2006).
A VARIAÇÃO DA LATERAL POSVOCÁLICA /L/ NO PORTUGUÊS DO BRASIL, Antonio José de Pinho
Ah, cá está, já se conseguem vislumbrar as primeiras diferenças e até parece que — desde que as fontes estejam plasmadas numa linguagem hermeticamente académica — afinal o assunto não é tabu e nem mesmo roça a fronteira do politicamente incorrecto.