Admirável Língua Nova (Parte V)
Ficámos singularmente isolados (passe a redundância) nesta razia etimológica – em muitos casos, desirmanados até do próprio Brasil, que pronuncia, ao contrário de nós, muitas consoantes etimológicas. Quisemos ser tão modernos, que acabámos parolos.
Manuel Matos Monteiro
“Público”, 17 de Dezembro de 2017
T. S. Eliot, em 1944, no texto ‘Que É Um Clássico?’, explicou que a sua época tendia a confundir sabedoria com conhecimento e conhecimento com informação, procurando resolver os problemas da vida à luz da engenharia. Eliot sentia desabrochar com particular intensidade um conceito de provincianismo que não encontrava nos dicionários. Provinciano não era apenas aquele que estava preso no seu espaço, não conhecendo outros; provinciano era também aquele que estava ancorado no seu tempo, desconhecendo todos os tempos anteriores a si, ignorando o longuíssimo caudal de sabedoria e cultura. O autor propôs assim o conceito de “provincianismo do tempo”, ou, se preferir, “provincianismo temporal”.
O “provincianismo temporal” é hoje mais acentuado numa época de pletora de “notificações” e informações digitais “actualizadas” a cada instante¹; em que o que aconteceu há uns meses já “foi há muito tempo”; em que o que não está no mundo digital não existe nem nunca existiu para muitos; em que tantos formam rapidamente opinião sobre quase tudo (dedicando, em média, três minutos a cada assunto na Rede); em que todos, mesmo sem nunca ter lido um livro na vida, podem ser escritores com o carimbo de uma editora a troco de dinheiro – o poeta, afiançava Eliot, só poderia curar do seu ofício, isto é, escrever poesia, conhecendo bem os seus predecessores.
Serve o intróito para situar o leitor quanto à seguinte proposição: o Novo Acordo é provinciano.
A escolha do critério da “pronúncia culta” (que o Acordo não consegue definir nem rastrear), em detrimento do critério etimológico, significa a mutilação da História que as palavras transportam. Mas o Acordo não fica por aqui. Não se trata apenas da preservação das raízes latinas – da identidade da nossa língua, no fundo. Trata-se ainda da preservação da lógica do hífen na nossa língua, da congruência nas famílias de palavras (elemento importante na aprendizagem das crianças), da maiúscula inicial nos meses por estar lá guardado, não poucas vezes, o nome de um deus – Janeiro, por exemplo, vem do deus Jano, não por acaso o deus que presidia aos inícios, o guardião das portas e dos portões. Mas podemos deixar a mitologia de lado e ir para coisas mais corriqueiras. “X-acto” tem origem na marca, ou seja, X-ACTO é marca comercial. Pois até aí mexeram: com o Acordo, temos o “x-ato” da marca X-ACTO. É a pseudológica dos talhantes das consoantes etimológicas.
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