Dia: 28 de Fevereiro, 2018

Uma oportunidade perdida


Já aqui realcei a incrível estupidez que foi este partido político ter-se deixado enredar nas intrigas palacianas dos peticionistas compulsivos, mas ainda assim parece-me continuar a merecer destaque o Projecto de Resolução que o dito partido apresentou recentemente.

Foi, na verdade — ou, melhor dizendo, poderia ter sido, caso o Grupo Parlamentar proponente não tivesse sido “parvo” — a melhor e mais viável proposta até hoje apresentada no Parlamento para desatar o imbróglio político (ou a incrível vigarice) a que se convencionou chamar “acordo ortográfico”.

A estupidez do “timing” na apresentação e a sua absurda mistura com uma petição idiota não retiram um átomo ao mérito da redacção, à credibilidade da sustentação ou à viabilidade da proposta.

Intervenção de Ana Mesquita na Assembleia de República

O PCP saúda os mais de 20 mil subscritores da petição, alguns dos quais aqui presentes nas galerias da Assembleia da República.

Em 4 de Junho de 1991, o PCP foi único Grupo Parlamentar que não votou favoravelmente a Proposta de Resolução sobre a ratificação do Acordo Ortográfico. Fizemos críticas severas quanto à metodologia seguida pelo Governo para apuramento das bases do AO90. Manifestámos as nossas preocupações quanto às consequências do Acordo, alertando que o processo tendia, e cito “a transformar-se num atoleiro cujas dimensões e proporções desconhecemos.” Estava certo o PCP.

De facto, veio o Primeiro Protocolo Modificativo, veio o Segundo, o Acordo continuou a ser um mau Acordo, a não responder às críticas feitas em 1990 por várias pessoas e entidades. E aqui estamos hoje. Subsistem incongruências, insuficiências, dificuldades práticas na aplicação do Acordo, visíveis todos os dias nas escolas, nos média, nos livros, nas páginas oficiais de entidades públicas. Foram referidas por inúmeras vezes em contributos escritos e audições dos Grupos de Trabalho sobre esta matéria.

O PCP não tem uma concepção fixista em torno da ortografia. Mas valorizamos a participação política e científica, o robustecimento técnico da norma escrita, a democraticidade da escrita e da oralidade. E estes são aspectos determinantes que não foram plenamente alcançados ou, alguns, sequer tidos em conta neste processo.

A existência de um qualquer Acordo só pode ter algum sentido se for integrada no contexto mais global de uma verdadeira política da língua.

Que promova maior cooperação com os países de língua portuguesa, com um profundo e intrínseco respeito pela identidade cultural de cada povo, que assuma a necessidade de promoção e difusão do livro e dos autores portugueses, que reflicta sobre a natural evolução da Língua envolvendo todos os interessados. Não por via de imposições legislativas desligadas da realidade concreta e da comunidade.

A verdade nua e crua é que, volvidos 28 anos, não existe um Acordo Ortográfico comummente aceite, ratificado e depositado, por todos os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Não há sequer previsão concreta em relação a países como Angola ou Moçambique. Falta-lhe o alicerce.

Há quem considere impossível ou contraproducente voltar atrás e corrigir os erros cometidos porque muitas crianças e jovens já aprenderam o Acordo na escola, mas não houve qualquer pejo em fazer experimentalismo ortográfico com os alunos que tiveram de o aprender.

A esmagadora maioria da população aprendeu a norma ortográfica anterior, e também por isso, não é tarde para corrigir um percurso com origem num procedimento errado, desde que se acautelem as necessárias medidas de acompanhamento a quem aprendeu e utiliza a grafia do Acordo.

É preferível aprender com todo este processo, estudá-lo, sair do Acordo Ortográfico e devolver a discussão – ou melhor, dar finalmente a discussão – à comunidade científica e literária na definição de objectivos e princípios de partida para uma nova negociação das bases e termos de um Acordo Ortográfico, assim seja entendida a sua necessidade, junto dos restantes países da CPLP.

É essa a proposta do PCP.

Source: PCP recomenda o recesso ao Acordo Ortográfico de 1990 | Partido Comunista Português

Desenho de: Facetoons

Milagre

«“Não deve confundir-se a função política, ao abrigo da qual foi assinado o Tratado do Acordo Ortográfico (1990) e o 2º Protocolo Modificativo, com a muito diversa função administrativa, ao abrigo do qual emitiu o Governo a Resolução do Conselho de Ministros e as `notas informativas’ do Ministério da Educação, nesta acção visadas”, alega ainda Artur Magalhães Mateus e restantes requerentes.»

Eisch. Fantástico. Isto significa que nem toda a gente nos três grupelhos “anti-AO” do Fakebook é absolutamente imbecil. Até que enfim, há pelo menos um daqueles indivíduos que reconhece a evidência mais básica!


Supremo Tribunal Administrativo vai analisar recurso que contesta legalidade do acordo ortográfico

Os recorrentes pretendem que sejam declaradas ilegais as normas da Resolução de Conselho de Ministros que impõem aos alunos do sistema educativo público o Acordo Ortográfico de 1990, bem como as normas regulamentares constantes das notas informativas do Ministério da Educação de Fevereiro e Setembro de 2012.

O Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA) vai analisar um recurso contra a decisão que considerou a jurisdição administrativa incompetente para apreciar a aplicação obrigatória do Acordo Ortográfico de 1990 aos alunos das escolas públicas.

A decisão de admitir o recurso consta de um acórdão de 22 de Fevereiro dos juízes do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, a que a Lusa teve acesso.

Em causa estava um recurso de Artur Alexandre Magalhães Mateus e outras pessoas para o pleno daquela secção do STA contra o acórdão em primeira instância daquele mesmo tribunal que declarou a “jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade” da norma sobre a aplicação obrigatória do Acordo Ortográfico de 1990 aos alunos das escolas públicas.

Na acção popular administrativa de impugnação daquela norma, os recorrentes pretendiam que fossem declaradas ilegais as normas da Resolução de Conselho de Ministros no que se refere à imposição aos alunos do sistema educativo público do Acordo Ortográfico de 1990, bem como das normas regulamentares constantes das notas informativas do Ministério da Educação de Fevereiro e Setembro de 2012.

No recurso, agora acolhido para ser apreciado, os requerentes alegam, entre outros pontos, que o acórdão recorrido incorre em “grave contradição” ao afirmar que a Resolução de Conselho de Ministros e as “notas informativas” do Ministério da Educação “não têm natureza administrativa, mas política”.

“Não deve confundir-se a função política, ao abrigo da qual foi assinado o Tratado do Acordo Ortográfico (1990) e o 2º Protocolo Modificativo, com a muito diversa função administrativa, ao abrigo do qual emitiu o Governo a Resolução do Conselho de Ministros e as `notas informativas’ do Ministério da Educação, nesta acção visadas”, alega ainda Artur Magalhães Mateus e restantes requerentes.

Nas suas contra-alegações, o Estado, representado pelo Ministério Público, argumenta que o acordo ortográfico celebrado em 1990 teve por objectivo criar uma ortografia unificada a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa e que o acto “emana do exercício da função política e não do exercício da função administrativa, comportando relevância jurídica nacional e internacional”.

Os juízes do Pleno reconhecem que esta é uma “daquelas zonas de fronteira em que é difícil estabelecer com nitidez a linha entre o que ainda é expressão imediata da função de orientação e direcção políticas do executivo e o que já é concretização normativa dessa função e das decisões em que se materializa”, mas concluem que “não andou bem o acórdão recorrido ao declara a jurisdição administrativa incompetente (em razão material) para conhecer a ilegalidade” das normas constantes da Resolução de Conselho de Ministros que impõe a obrigatoriedade do acordo ortográfico de 1990 aos alunos do ensino público.

“Sucede que, ao considerar-se, como agora se faz, que os números 1 e 3 da Resolução de Conselho de Ministros são actos de natureza regulamentar, há que dar razão aos recorrentes, julgando este Supremo Tribunal hierarquicamente competente para apreciar a ilegalidade das ‘notas informativas’ (do Ministério da Educação)”, refere os juízes do Pleno do Contencioso Administrativo do STA.

Com estes fundamentos, acordam os juízes do pleno “em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em ordenar a baixa dos autos à Secção para que se conheça do pedido” e seja apreciada a questão de fundo sobre a ilegalidade (ou não) da resolução de Conselho de Ministros que tornou obrigatório o acordo ortográfico para os alunos do ensino público.

Source: Língua Portuguesa | Supremo Tribunal Administrativo vai analisar recurso que contesta legalidade do acordo ortográfico | PÚBLICO

“Decisão”?

Uma decisão para lamentar

Luís Menezes Leitão
Jornal “i”, 27.02.18

O acordo ortográfico contribui para abolir as variantes cultas das palavras e as suas ligações etimológicas. A língua portuguesa torna-se mais pobre e distante das suas raízes, transformando-se num idioma de laboratório.

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A semana passada foi marcada pela rejeição, pelo parlamento, da proposta do PCP de abandono do acordo ortográfico. Trata-se de decisão que demonstra bem a insensibilidade dos nossos deputados, uma vez que, perante o desastre que está a ser a aplicação deste acordo, o parlamento prefere ignorar o que se está a passar, assistindo pacificamente à destruição total da língua portuguesa. Porque de facto, com este acordo ortográfico, o português europeu está a transformar-se num estranho dialecto, com regras escritas incompreensíveis, que se afastam da sua etimologia e das restantes línguas latinas. Com a agravante de nem sequer haver qualquer uniformização com os outros países de língua portuguesa que ou não aplicam o acordo ou do mesmo resulta que sigam regras diferentes, graças à pronúncia que utilizam.

Um bom exemplo disto resulta da recente tradução do livro da escritora argentina María Gainza, que em espanhol se chama “El nervio óptico”, mas que no português acordista se transforma em “O Nervo Ótico”. O problema é que sempre se utilizou na língua portuguesa a expressão “ótico” como relativa ao ouvido, reservando-se o termo “óptico” para a visão. Tal é o significado dos respectivos antecedentes gregos “otikos” e “optikos”. O acordo ortográfico aboliu esta distinção essencial, mas apenas no português de Portugal, continuando a distinção a existir no português do Brasil. Será que isto faz algum sentido?

E o mesmo sucede com outras palavras como “recepção”, “concepção”, que se conservam sem alterações na ortografia brasileira, mas que na portuguesa passam a “receção” e “conceção”, facilmente confundíveis com “recessão” e “concessão”. Qual a necessidade de abolir a grafia anterior se o que se consegue é criar uma ortografia que ainda mais se diferencia da dos outros países lusófonos?

Isto já para não falar da multiplicação dos erros de escrita que o acordo ortográfico causou, com a absurda directriz de querer abolir as consoantes mudas, estando muita gente a abolir consoantes que continuam a pronunciar–se. É assim que já se viu aparecer erros como “fato”, “ineto”, “corruto”, que demonstram bem a falta de critério na abolição das consoantes pretensamente mudas.

E por último deveria salientar-se o facto de o acordo ortográfico contribuir para levar à abolição das variantes cultas das palavras e às ligações etimológicas das mesmas. Assim, a expressão culta “ruptura”, mais próxima do latim, foi transformada em “rutura”, esquecendo-se que já existia a variante popular “rotura”. Fala-se em “ótico” para a visão, mas esquece-se que a medição da mesma continua a ser a “optometria”. E os egípcios, pelos vistos, passaram agora a viver no “Egito”, esquecendo-se que a palavra Egipto tem origem no deus Ptah que, que se saiba, ainda não passou a Tah. Com o acordo ortográfico, a língua portuguesa torna-se assim mais pobre e distante das suas raízes, transformando-se num idioma de laboratório.

Na banda desenhada “Spirou e Fantásio”, da autoria de Franquin, aparece um vilão chamado Zorglub que pretende criar uma ditadura alterando o cérebro das pessoas, o que as faz falar e escrever numa nova língua, a zorglíngua, em que todas as palavras surgem ao contrário. Esperava-se que um parlamento democrático, como o português, nos livrasse deste triste destino. Mas afinal, graças aos restantes partidos, com excepção do PCP, vai tudo continuar como dantes. Isto não foi uma decisão parlamentar, foi uma decisão para lamentar.

[Transcrição integral de Uma decisão para lamentar, por Luís Menezes Leitão, Jornal “i”, 27.02.18. Destaques e “links” meus. Imagem de topo: não encontro autoria.]