Dia: 2 de Março, 2018

AO90 «é um golpe de estados» [por Alexandra Lucas Coelho, “Sapo24”]

Este país partido ao meio pela própria língua

Somos muitos clandestinos. Mas não fomos nós que sequestrámos a língua. De certa forma, o acordo ortográfico é um golpe de estado progressivo.

Alexandra Lucas Coelho
“Sapo24”, 02.03.18

1. O que aconteceu há uma semana no parlamento português é de pasmar, para quem ainda for capaz. Todos os deputados portugueses, com a honrosa excepção dos comunistas e de dois centristas, são agora co-responsáveis por a) um erro com décadas b) Portugal estar partido ao meio pela própria língua c) manter tantos portugueses na clandestinidade.

Que dia cheio, essa quinta-feira, 22 de Fevereiro. E lendo nas notícias até parecia que não tinha sido nada demais, a votação na assembleia. Assunto arrumado.

2. Como quiçá 99 por cento dos portugueses, estou farta deste assunto. Há uma boa razão para isso. É que o assunto tem barbas. Tanto tempo que o facto de até agora não ter sido possível enfiarem-nos o acordo pela goela é uma prova de como ele é um mau acordo. Outra prova, claro, é o facto de terem que tentar, e continuarem a tentar, enfiar-nos o acordo pela goela. Quanto mais tempo passa, mais me apetece dizer que nunca escrevi nem escreverei uma frase segundo o acordo. E quanto mais tempo passa mais me chateia que os meus sobrinhos sejam obrigados a ler e escrever asneiras, e quando todos eles aprenderem a ler e escrever fiquemos separados por tanta asneira. Cada um dos deputados que se absteve ou votou pela continuidade é responsável por isso.

De resto, com o aval dos deputados eleitos, a minha situação, e a de tantos portugueses, é oficialmente essa: estamos, vivemos, trabalhamos na clandestinidade. Mas quem sequestrou a língua não fomos nós. De certa forma, o auto-proclamado acordo é um golpe de estado progressivo. Um golpe de estados, aliás. E isso faz parte do equívoco de base.

3. Esta monumental perda de tempo, dinheiro, burocracia e energia vem de 1990. São 28 anos — vinte e oito anos — de declarações, contorções, petições, recursos, rejeições, discussões, pancadaria verbal desde o equívoco de base. Os contestatários foram ignorados, partiu-se para a imposição: em Portugal, o acordo entrou em vigor em 2009, tornou-se obrigatório nas escolas públicas em 2011, nos organismos públicos em 2012, e em geral (?) em 2015, data desde a qual um aluno que não escreva segundo o acordo é penalizado.

Totalitarismo por etapas. Mas em nome de quê?

4. Aí está o equívoco de base: em nome de uma visão política desligada da vida. Da vida da língua, com as suas mutações naturais, da vida de cada país onde essa língua é dominante, e das relações entre esses países. Já me perdi no imbróglio do que gerou o acordo, se/como os linguistas foram utilizados pelos políticos e/ou vice-versa, ou a certa altura os defensores do acordo se cristalizaram nessa posição porque sentiam que já tinham ido demasiado longe para voltar atrás.

Supostamente este acordo era para aproximar os países de língua portuguesa. Mas o que separa os países de língua portuguesa são muitas outras coisas, muitas delas de facto políticas, muitas delas de facto incómodas, muitas delas de facto sistematicamente ignoradas, ou menosprezadas, enquanto um acordo totalmente desnecessário, supostamente a bem da lusofonia, nos mói o juízo há 28 anos.

Expressões que me tiram do sério: países da lusofonia. Que países da lusofonia? Lusofonia resulta de uma ideia de dominação, ou dominância, lusa, sem sentido. Não há países da lusofonia. Há países que falam a língua portuguesa. E, não por acaso, Portugal está bem, bem longe de ser o mais populoso.

5.* Também estou longe de em geral votar PCP, o partido que corajosamente fez a proposta rejeitada no parlamento, para que Portugal se retirasse do acordo. Estar contra o acordo é o ponto em que coincido com os comunistas, depois divirjo em parte quanto à visão da língua portuguesa, as relações entre os países que falam a língua portuguesa. Mas pasmei com a quantidade de deputados que votaram em massa, ao lado dos seus partidos, contra a proposta do PCP. As abstenções ficaram-se pela meia dúzia.

Difícil de acreditar. Toda esta gente está mesmo convicta de que o acordo é uma coisa boa? Ou acha apenas que dá demasiado trabalho voltar atrás? Seja como for parecem imunes ao facto de tanta gente, com argumentos, não seguir o acordo.

6. Mexeu-se na língua, onde não fazia falta, por maus motivos políticos. Esse acordo, alegadamente para o melhor entendimento de vários países, conseguiu transformar-se em grande desentendimento neste país. Entretanto, todos os dias me sento a esta mesa, e bato neste teclado palavras que oficialmente já estão erradas, como pára em vez de para, ou pêlos em vez de pelos.

O meu trabalho é escrever há mais de trinta anos. Na minha geração, tenho de pensar um bocado para achar conhecidos que escrevam voluntariamente segundo o acordo. E na geração posterior idem. A petição que acompanhava a proposta do PCP tinha 20 mil assinaturas, mas multiplicar isso por 100 não me pareceria pouco razoável. Imagino a quantidade de professores que não gostam do acordo e são obrigados a usá-lo. Com certeza que muitos seguidores do acordo o fazem por obrigação, em organismos públicos, ou empresas que tomaram a decisão de aplicar o acordo por contingências várias. Entre 2011 e 2012 aconteceu editoras acharem que o caminho já era irreversível, e terem começado a aplicar o acordo, para depois retrocederem.

Falhado o parlamento, a próxima esperança dos desalinhados será o recurso que o Supremo vai analisar, quanto à ilegalidade ou não de impor a aplicação do acordo.

7. A língua portuguesa são tantas que ainda não as conheço, nem conhecerei. Morei anos no Brasil, e que sorte, a língua tornou-se muito maior. Vou à Guiné, a Cabo Verde, a Moçambique, idem. A língua vai à frente de qualquer dicionário, e se quem escreve não der trabalho aos arrumadores da língua estamos tramados. Portanto, os clandestinos estão naturalmente na clandestinidade. Mas não por decreto, com um acordo tipo implante. Deixem a língua solta, porque ela muda a cada minuto. O trabalho dos dicionários, e dos especialistas, é correrem atrás.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Alexandra Lucas Coelho, publicado no site “Sapo24” em 02.03.18. Destaques e “links” meus. Imagem de topo de: jornal “Público”]

*Parece-me que a sequência numérica (lista ordenada, “ol”) tem um equívoco no original: repete o número 4.

Boa pergunta!


Brasil x Portugal: falamos a mesma língua?

Gui Pacheco
“Metrópoles” (jornal? revista? site?), 01/03/2018 5:30

Por que parece, às vezes, que ouvimos um idioma estrangeiro quando estamos em solo português? Saiba as diferenças no idioma lá e cá

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O grande poeta português Fernando Pessoa, por meio de seu heterônimo Bernardo Soares, dizia que “minha pátria é a língua portuguesa”. O nosso genial Caetano Veloso, décadas depois, cantou: “A língua é a minha pátria / E eu não tenho pátria, tenho mátria / E quero frátria”. 

De um lado ou de outro do Atlântico, o mesmo sentimento em relação à nossa língua. Por que parece, então, que às vezes estamos a ouvir um idioma estrangeiro quando nós, brasileiros, nos encontramos em solo português? Séculos e milhares de quilômetros de distância construíram barreiras e praticamente dialetos diferentes lá e cá.

O pouco interesse cultural que o brasileiro comum sempre teve em relação a Portugal ajudou a construir esse abismo. Isso, somado ao fato de que línguas são organismos vivos, foi afastando o português brasileiro do português de Portugal. Fenômeno que não se percebe tão forte em relação ao português de Angola ou ao de Moçambique, se comparados ao falado nas ruas de Lisboa ou do Porto, por exemplo. E não é simplesmente uma questão de sotaque. É vocabulário, são os pronomes de tratamento, a construção das frases.

Quando estudava conjugação verbal nos bancos escolares, não entendia muito bem a importância de conjugar as segundas pessoas (o “tu” e o “vós”) se não as usávamos no dia a dia. Hoje eu entendo: para conversar com o português ou para compreendê-lo melhor. Não é o “você falou” ou ainda o “tu falou”, como se diz em algumas regiões do Brasil. Em Portugal, é o castiço “tu falaste”.

Está vendo como foi útil não fugir das aulas de gramática? O “você” é muito brasileiro, evolução do “vosmecê”, que veio do “Vossa Mercê”.

Outra construção 100% brasileira é o gerúndio. O português nunca está cantando. Ele está sempre a cantar.

Mas fique tranquilo, que os portugueses sempre entendem o que falamos. Não é preciso tirar onda e tentar falar à portuguesa. Soa meio ridículo, igualzinho quando nos achamos experts em espanhol e arriscamos um portunhol tosco. Não seria descabido criar um curso de português de Portugal para brasileiros, assim como existem cursos de português para estrangeiros.

Talvez por influência imensa das novelas brasileiras que ainda fazem sucesso aqui e do repertório monumental de músicas brasileiras, os portugueses se habituaram com a cadência mais lenta e musical do português brasileiro e compreendem tudo o que falamos. Quer dizer, quase tudo. Há diferenças no vocabulário em quase todas as áreas, dos nomes das frutas aos nomes das ferramentas, das gírias aos tipos de roupas.

“Clementina” é mexerica, “berbequim” é furadeira, “fixe” ou “giro” é legal ou bacana, “camisola” é camiseta, e “cueca” é cueca mesmo – ou calcinha, para mulheres! Bumbum é “rabo”, injeção é “pica”. “Levar uma injeção no bumbum” traduzido para o português de Portugal só fica obsceno no Brasil. Há uma lista enorme de termos cujas versões lusitanas não têm nada a ver com as brasileiras, e aqui, na coluna, sempre aparece alguma coisa.

Quando não são os termos completamente diferentes, é a pronúncia esquisita de algumas palavras que ferem os nossos ouvidos. Pizza, por exemplo, escreve-se do mesmo jeito. Mas se pronuncia “piza” em Portugal. A primeira vez que ouvi, achei que a pessoa, um sujeito instruído, estava de brincadeira. Cinco aqui vira “xinco” na pronúncia.

Não sei por que os portugueses adoram a expressão “fazer sentido”. “Não faz sentido o que você está a dizer”, em que a pronúncia do “faz sentido” fica quase um “faixintido”. Com o tempo, a gente acaba incorporando ao nosso dia a dia expressões bastante lusitanas, como atender ao telefone falando “tô” em vez de “alô” ou pedindo um “se faz favor” (“xifaixfavor”) em vez de “por favor”.

Como dizia Caetano, “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”.

[Transcrição integral (incluindo a parvoíce da imagem, desta vez não me apeteceu arranjar algo decente para “abrilhantar” a artistice) de Brasil x Portugal: falamos a mesma língua?”, artigo publicado numa coisa brasileira chamada “Metrópoles” em 01.03.18.]