Fascinante entrevista de nosso actual Ministro da Cultura, verdadeiro poço de contradições com pernas, salvo seja, pessoa capaz de dizer uma coisa e de imediato o seu contrário, mas sempre sem se rir, com o ar mais sério deste mundo e do outro. Enfim, mais do outro do que deste — daí rir-se a gente por ele, porque de facto tem Sua Excelência sua piada.
Luís Filipe Castro Mendes: “Este Acordo Ortográfico não é perfeito”
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Pode dizer-se que A Misericórdia dos Mercados é onde essa afirmação de vida mais existe?
Esse livro tem que ver com uma revolta com determinado discurso que nos foi imposto e tendia a negar aquilo que é mais humano em nós: a capacidade de transformar e a dignidade de quem trabalha. O livro revolta-se contra uma ordem do mundo que assenta na lógica puramente financeira, daí ser vincadamente de protesto, apesar de igualmente melancólico porque manifesta a desilusão com uma ordem política e económica que parece negar o que há-de mais importante na humanidade.
No prefácio é referido que esta é uma “poesia culta”. Revê-se?
Mesmo que se queira muito ingénua, a poesia tem de ser culta porque está sempre em diálogo. Tem sempre que ver com o que já foi escrito, mesmo que se a queira muito vanguardista e a arrasar todo o passado. Diz-se que esta poesia é culta porque cita muito. É verdade, existe grande vontade de citar e falar para o círculo dos que conhecem o mundo poético. Gostaria que tocasse mais gente, porque há muitos poemas que procuram ir ao coração das pessoas.
A grande alteração está na utilização do Acordo Ortográfico em vigor. Não lhe foi difícil?
Não considero que este Acordo Ortográfico seja perfeito e penso que há coisas susceptíveis de melhoria, mas sendo o que se utiliza oficialmente achei que seria hipócrita não o fazer. Isto sem criticar outras pessoas, até porque não tenho ideias tão fortes sobre ortografia como elas. O acordo não é o melhor possível mas está vigente e segui-o para horror e espanto de muitos amigos. Não porque lhe tenha um grande amor, mas porque para mim a ortografia é uma convenção e não considero que a anterior seja a maior das maravilhas. Tudo se pode aperfeiçoar, é a minha opinião. Enquanto estiver em vigor vou segui-lo e lamento os meus amigos que consideram isto uma traição. Há como que uma luta de religiões em torno do acordo, só que eu não tenho religião. Acredito que esta opção vá ser muito criticada, mas é assim.
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A língua portuguesa falada nesses países entrou nos poemas?
Sim, em Os Dias Inventados tenho um poema em que escrevo “Se eu beijar você na tua boca”. Tem que ver com a diferença do português de Portugal e o do Brasil, e mostra como a linguagem íntima deles faz-se com o “você” e que para nós usar essa palavra num momento de maior arrebatamento de paixão não faz muito sentido.
Tem diálogos poéticos com Bandeira, Caetano, Chico… O brasileiro é assim tão imponente?
Há uma grande unidade da língua apesar dos vários padrões. Quando se vive no Brasil, verifica-se que falamos a mesma língua se não tivermos em conta o nível semântico em certas palavras e a pronúncia.
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[Source: Livro – Luís Filipe Castro Mendes: ″Este Acordo Ortográfico não é perfeito″, “DN”, 10.03.18. Transcrição parcial. “Links” e destaques meus. As letras em falta no original foram automaticamente repostas pela solução Firefox contra o AO90 através da “extensão” FoxReplace do “browser”.]