Aquilo que sucedeu no passado dia 22 de Fevereiro de 2018 foi de facto uma oportunidade perdida e culminou no triste, deprimente resultado que puderam testemunhar os espectadores da ARTV (umas dezenas, certamente) e todas as três pessoas então presentes nas galerias do Parlamento.
Porém, à excepção dos mais do que previsíveis resultados — dada a confusão gerada entre uma petição a brincar e um Projecto de Resolução a sério –, o que se passou naquela sessão parlamentar foi extremamente positivo.
Sem atender aos (aparentemente desastrosos) resultados, enquadremos o sucedido com alguns antecedentes.
Junho de 2012
Havia, portanto, que ir procurando alternativas.
Por exemplo, sugerir aos deputados que tinham votado contra a RAR 35/2008 que avançassem eles mesmos com uma resolução ou outra iniciativa parlamentar do mesmo teor.
Para os que votaram contra a RAR 35/2008 poderem avançar “internamente” com uma iniciativa (ou resolução) própria teriam de ser pelo menos 23 (10% do total dos assentos parlamentares) e não apenas 4, que foram quantos votaram de facto contra a dita RAR. Ainda que pudessem contar com os 17 deputados que se abstiveram naquela mesma votação, seriam 21 no total: não era suficiente. Acresce que seria muito difícil os deputados do PCP, o único partido que então se absteve em bloco, aliarem-se numa iniciativa legislativa aos seus mais férreos adversários políticos, no mesmo hemiciclo onde todos os dias se confrontam. E acresce ainda que não é lá muito fácil ao povo sequer chegar “à fala” com os seus representantes no Parlamento, quanto mais convidar uns quantos deles, de vários partidos, para conversar placidamente à volta de uma mesa.
Mas foi isto mesmo o que efectivamente tentámos. Já tínhamos encetado contactos nesse sentido, tendo como alvo preferencial alguns dos deputados de diferentes “bancadas” que tinham tomado posição pública contra o AO90.
Pois então vejamos o que dizem agora, quase cinco anos volvidos sobre aquilo que na altura parecia impossível, os representantes de duas das (quatro) bancadas parlamentares que aprovaram a entrada em vigor do AO90.
Fevereiro de 2018
«Muito a discutir, portanto, e por isso propusemos a criação de um Grupo de Trabalho (actualmente em funcionamento no âmbito da Comissão de Cultura) que nos permitirá, no curto prazo, dispor de um ponto de situação pormenorizado sobre os efeitos da aplicação do acordo e, portanto, avaliações ponderadas, sustentadas por argumentos que no essencial não poderão deixar de ser de ordem técnica e científica. E é também por isso que achamos extemporâneo o Projecto de Resolução agora apresentado pelo Partido Comunista Português. Para concluir, não abandonamos o entendimento de que se justificam todos os esforços de envolvimento solidário dos países que connosco partilham esta Língua comum, no sentido da sua defesa e valorização, não desconhecemos o que se nos exige a todos de ponderação e de responsabilidade numa matéria a vários níveis sensível. Mas também não queremos, como tem sido a posição do Governo e a posição do Partido Socialista, fazer de conta que não há nada a discutir, quando, na verdade, está um elefante sentado no meio da sala.»
«Este, a nosso ver é um trabalho que é sério, que tem sido sério, sobre um assunto que é sério. Ouvir pessoas, entidades, instituições, pontos de vista, o que foi exactamente o que falhou antes das assinaturas do Tratado e dos Protocolos. Repito: neste momento, aguardamos que esse Grupo de Trabalho — que ouviu essas entidades, que ouviu essas pessoas — possa concluir o seu trabalho e elaborar um relatório final, de onde possamos não só retirar as melhores conclusões sobre o que fazer com este acordo, que parece manifestamente um desacordo, mas, ao mesmo tempo, das formas como, defendendo o interesse nacional, pugnando pelas relações internacionais de Portugal, pela palavra dada por Portugal, poder também defender os interesses e a prática de todos os portugueses, que é manifestamente contrária a este acordo nestes termos.»
Ou seja, o Projecto de Resolução do PCP bem poderia ter sido algo como o que — recuemos de novo os mesmos cinco anos e até ao mesmo ponto — já tinha sido “inventado”, isto é, aventado.
Junho de 2012
A ideia não seria propriamente “convidar uns quantos deles, de vários partidos, para conversar placidamente à volta de uma mesa”, mas convocar o máximo possível de deputados para uma sessão (ou reunião) extraordinária, no próprio Palácio de S. Bento, em que seria ouvida uma delegação da ILC e enunciadas e discutidas entre todos as diversas alternativas de acção concreta.
O que se poderia sequer imaginar de melhor do que isto? Essa sessão deveria realizar-se para além do horário normal (à noite, portanto), provavelmente na Sala do Senado, com a presença de “dois ou três” oradores principais convidados por nós, com a possibilidade de haver outras participações no debate até de alguma gente, igualmente convidada, na assistência.
Em cima da mesa estariam, à partida, três hipóteses principais:
- A apresentação, por parte de um único Deputado ou de vários, de um projecto de lei de conteúdo e objectivos similares aos da nossa ILC, conforme previsto na alínea b) do Art.º 156.º da CRP. Isto evidentemente, desde que fique garantida a liberdade de voto, ou seja, que em sede de reunião de líderes de grupos parlamentares se convencione a abolição da “disciplina de voto” neste projecto de lei em concreto.
- A constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (Art.º 178.º – 4 CRP), requerida por 46 Deputados, com a finalidade de investigar todos os procedimentos do processo legislativo que conduziu à aprovação da RAR 35/2008 (II Protocolo Modificativo) e tendo por (óbvia) consequência a apresentação de uma iniciativa legislativa em conformidade.
- A apresentação de um pedido de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da RAR 35/2008, do II Protocolo Modificativo e/ou do próprio AO90, por parte de (no mínimo) 23 deputados de todas ou de pelo menos duas bancadas parlamentares. (Art.º 281.º – f) CRP).
Esses contactos com deputados das bancadas do PSD e do PCP demonstraram, já naquela altura, que havia não apenas objecções como até existia verdadeira resistência, se bem que dispersa e algo errática, em todo o espectro político-partidário do mesmo sistema parlamentar que tinha aprovado a entrada em vigor de semelhante aberração.
Dezembro de 2012
Chegados a Dezembro de 2012, já muita coisa se tinha passado neste âmbito: além das reuniões com dois deputados do PSD, tínhamos sido recebidos em audiência na CECC1, no dia 12 de Julho de 2012. E prosseguiu o seu curso, é claro, o nosso programa de audiências com deputados de várias áreas partidárias, a fim de os sensibilizar para a nossa iniciativa cívica em particular e para a oposição ao “acordo ortográfico” em geral. Muitos pedidos de reunião nos foram recusados, até então, e outros tantos viriam a ser pura e simplesmente ignorados depois disso, é verdade, mas pelo menos duas das “bancadas” parlamentares conseguimos nós “furar”.
Uma história (muito) mal contada [XX]
No passado dia 7 de Dezembro uma delegação representativa do grupo de cidadãos que promovem a ILC contra o AO90 foi recebida por dois deputados do Grupo Parlamentar do PCP na Assembleia da República, na sequência de encontros marcados com os diferentes grupos políticos com o fim de os informar a respeito da nossa luta e procurar apoios entre eles(ver nota).
Esta reunião em particular alongou-se por várias horas e houve evidente interesse no assunto por parte dos deputados João Oliveira e Miguel Tiago.
E chegamos a 2018, por fim, com o PCP — o único partido que se absteve em bloco, há já uma década, aquando da votação da entrada em vigor do AO90 — a avançar com um projecto viável e exequível para a reversão do processo, a correcção do erro, o fim da aberração.
Fevereiro de 2018
«O PCP não tem uma concepção fixista em torno da ortografia. Mas valorizamos a participação política e científica, o robustecimento técnico da norma escrita, a democraticidade da escrita e da oralidade. E estes são aspectos determinantes que não foram plenamente alcançados ou, alguns, sequer tidos em conta neste processo. A existência de um qualquer Acordo só pode ter algum sentido se for integrada no contexto mais global de uma verdadeira política da língua. Que promova maior cooperação com os países de língua portuguesa, com um profundo e intrínseco respeito pela identidade cultural de cada povo, que assuma a necessidade de promoção e difusão do livro e dos autores portugueses, que reflicta sobre a natural evolução da Língua envolvendo todos os interessados. Não por via de imposições legislativas desligadas da realidade concreta e da comunidade. A verdade nua e crua é que, volvidos 28 anos, não existe um Acordo Ortográfico comummente aceite, ratificado e depositado, por todos os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Não há sequer previsão concreta em relação a países como Angola ou Moçambique. Falta-lhe o alicerce. Há quem considere impossível ou contraproducente voltar atrás e corrigir os erros cometidos porque muitas crianças e jovens já aprenderam o Acordo na escola, mas não houve qualquer pejo em fazer experimentalismo ortográfico com os alunos que tiveram de o aprender. A esmagadora maioria da população aprendeu a norma ortográfica anterior, e também por isso, não é tarde para corrigir um percurso com origem num procedimento errado, desde que se acautelem as necessárias medidas de acompanhamento a quem aprendeu e utiliza a grafia do Acordo. É preferível aprender com todo este processo, estudá-lo, sair do Acordo Ortográfico e devolver a discussão – ou melhor, dar finalmente a discussão – à comunidade científica e literária na definição de objectivos e princípios de partida para uma nova negociação das bases e termos de um Acordo Ortográfico, assim seja entendida a sua necessidade, junto dos restantes países da CPLP. É essa a proposta do PCP.»
Calhou ter sido o PCP a apresentar esta proposta mas bem poderia ter sido outro dos partidos com assento parlamentar a fazê-lo. Ou, porque não, como já havia sido aventado há quase seis anos, poderiam ter sido — e poderão vir a ser — deputados de todas as bancadas!
Em 2012 ainda existiam somente alguns renitentes, mas agora a bancada parlamentar do PSD considera apenas “extemporâneo” o Projecto do PCP — o que significa que há-de chegar, estará próxima a ocasião em que algo semelhante seja oportuno, atempado, tempestivo.
Em 2012 ainda não tinha aquele Partido uma posição definida sobre o assunto, mas agora já vem o CDS dizer que “neste momento” aguarda um relatório para que se decida “o que fazer com este acordo, que parece manifestamente um desacordo”.
Em 2012 ainda não havia uma percepção generalizada do cAOs gerado pelo AO90, mas agora já vemos claros sinais de (pelo menos) extremo desconforto quanto a este problema por parte de deputados/as até da bancada do PS.
Em 2012, portanto, ainda não estavam reunidas as condições políticas suficientes para a viabilização de uma saída política para esta questão, que é também ela unicamente política, mas agora podemos concluir — sem margem para dúvidas — que já estão reunidas essas condições.
Apenas faltará, assim sendo, juntar às condições políticas entretanto reunidas a vontade política necessária para que seja dado um derradeiro, se bem que decisivo, pequeno passo: que em próxima iniciativa de teor similar ou finalidades afins ao Projecto reprovado em 22 de Fevereiro de 2018, os 230 representantes do Povo português tenham liberdade para votar segundo a sua consciência e não consoante as directivas das respectivas direcções partidárias.
O AO90 é afinal um imbróglio político — porque foi inventado por alguns políticos — mas não é, de todo, uma questão partidária. Uma coisa é o jogo político-partidário, que tem tudo a ver com ideologia, outra coisa completamente diferente é a consciência de cada qual. A Ortografia, enquanto património nacional estruturante e identitário, é uma questão que depende exclusivamente da opinião dos cidadãos nacionais — que os deputados também são, sem terem de prescindir das suas próprias convicções.
Nesta matéria, por excepção mais do que justificada, que haja liberdade de voto no Parlamento!
É esse, afinal, o âmago do sistema democrático. Nada de mais natural, por conseguinte, do que ser a própria Casa da Democracia a dar o exemplo daquilo que é a sua essência.
[Imagem de topo de: “The Eye“]