Este artigo do “Público” tem muito interesse sob diversos aspectos, qual deles o mais evidente. Porém, aquilo que mais chamou a atenção do meu radar mental — que desatou a apitar por duas vezes durante a leitura — foi o facto de nele se notar uma certa insegurança ortográfica. Ora, se bem que o texto navegue em águas profundas (os sistemas da linguagem) e se fixe na oralidade (“aquilo que é dito”), quando a argumentação remete para o ensino, então já a ortografia será uma componente incontornável, seja qual for o ângulo ou a perspectiva de análise sobre o problema das “dificuldades da linguagem”.
Curioso paradoxo, portanto: num texto sobre “perturbação específica da linguagem” em ambiente pedagógico, há duas ocorrências — que tive obviamente de verificar em diversas fontes (texto do AO90, “dicionário de mudança“, Priberam, “guia” parlamentar, histórico de buscas) — de “neologismos” acordistas (vulgo, palavras estropiadas pelo “acordo ortográfico”), apesar de no mesmo texto todas as chamadas “consoantes mudas” estarem en su sitio. E mesmo assim, é claro, apesar de check, double check e triple check, não tenho a certeza absoluta da coisa — como ninguém pode ter certezas a 100% sobre coisa alguma daquilo que “estipula” o AO90, o expoente máximo das “perturbações específicas da linguagem”.
Mas fica o desafio, mesmo assim: veja se consegue descobrir as tais duas bizarrias acordistas que fizeram disparar o radar, piii piiii, raios, foi uma chatice, quase se me avariava a engenhoca.
Perturbações específicas da linguagem
Alexandre Sargaço
Pedro Cabral
“Público”, 1 de Abril de 2018
A perturbação específica da linguagem (PEL) é algo que afecta a compreensão e/ou a expressão do que é dito e tem uma prevalência de cerca de 7%. E, ao contrário do que o nome indica, não é tão específica assim.
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As dificuldades da linguagem são frequentes, não são imaturidades que desaparecem com o tempo e podem ter um grande impacto, não só no desempenho escolar, mas também na relação com os outros e no desenvolvimento emocional.
Quando uma criança entra no 1.º ano do ensino básico, já tem normalmente um conhecimento implícito das regras dos diferentes sistemas da linguagem (fonologia, semântica, morfologia, sintaxe e pragmática). Se a aquisição destas competências é feita de forma homogénea, embora mais lenta do que o esperado para a idade, falaremos de um atraso simples no desenvolvimento da linguagem. Mas se essa dificuldade for apenas em um, dois ou três dos diferentes sistemas e não em todos? E se elas apenas se tornam visíveis com o aumento na exigência e na complexidade das matérias?
“O humor negro é sobre pessoas negras” (sic)! Quão difícil pode ser extrair o significado além do que é dito nas palavras, na sua leitura literal. “Um meio de transporte é um transporte partido” (ao meio). “Dúzia e meia é o mesmo que meia dúzia.” Os colegas até poderão rir, os adultos pensar que estará certamente a gozar. Mas ninguém reparou que há um problema de descodificação da mensagem, uma dificuldade na sintaxe e uma interpretação demasiado concreta?
As dificuldades no acesso ao léxico podem tornar o discurso confuso. “É aquilo para pôr os pés e para saltar nas lamas” para descrever botas de borracha. “Como é que se chama aquilo que se parece com uma pistola e que é para fazer buracos na parede, ai, como é que é?…” para nomear o berbequim.
A perturbação específica da linguagem (PEL) é algo que afecta a compreensão e/ou a expressão do que é dito e tem uma prevalência de cerca de 7%. E, ao contrário do que o nome indica, não é tão específica assim, já que coexiste frequentemente com atrasos em outras áreas do desenvolvimento, como o défice de atenção, de coordenação motora ou com um maior risco de problemas de comportamento e de ajuste psicossocial.