Eis um artigo de opinião que, com a devida vénia, me atrevo a comentar, com o devido respeito, na minha simples, modesta e conhecida qualidade de leigo na matéria (jurídica), isto é, enquanto simples sapateiro, sem o devido chinelo.
Há ali várias questões (digamos assim) que me encanitam, salvo seja, mas por economia de esforço puxarei de minhas modestas ferramentas mentais (goiva, furador, sovela e martelo, como compete) para ao menos tentar atamancar apenas duas das encanitantes questões.
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A RCM 8/2011: afinal o AO90 está ou não está em vigor?
Diz o autor do artigo: «(…) há, de facto, um sem número de estudos válidos, em artigos de jornais e revistas, conversas televisadas, e até livros de Direito, incluindo um meu, intitulado O Acordo Ortográfico de 1990 não Está em Vigor, (…), todos provando a inconstitucionalidade da RCM 8/2011 e, como consequência, a sua ineficácia jurídica.»
E mais adiante: «Na verdade, será que o senhor ministro tem mesmo a certeza de que o AO/90 está em vigor?!. De facto, a não ser o seu fabricante ? o doutor Malaca Casteleiro ?, ninguém ainda se atreveu a declarar, peremptoriamente, tal vigência legal, antes o contrário (…).»
Ora então vejamos o que diz sobre isto mesmo a tal RCM 8/2011: «O Acordo do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 (…), determinou uma nova forma de entrada em vigor do Acordo Ortográfico com o depósito do terceiro instrumento de ratificação. Assim, (…), o Acordo Ortográfico já se encontra em vigor na ordem jurídica interna desde 13 de Maio de 2009.»
A palavra a vermelho (“assim”) é a chave ou, melhor dizendo, é a palavra-chave para abrir o ficheiro do entendimento.
Todos sabemos que aquela RCM 8/2011 não passa de uma aldrabice pegada, pois com certeza, mas essa aldrabice jamais teria sido possível caso os deputados da Nação não estivessem a dormir (ferrados) quando aprovaram a RAR 35/2008 — a mãe de todas as aldrabices.
Portanto, sem RAR 35/2008 não poderia haver RCM 8/2011. Logo, revogar a RCM 8/2011 (como alguns andam por aí a badalar, todos contentes com suas finíssimas espertezas) seria rigorosamente igual ao litro porque, por via da RAR 35/2008, “o Acordo Ortográfico já se encontra em vigor na ordem jurídica interna desde 13 de Maio de 2009“.
O que significa que se, por mera hipótese académica, os que andam por aí a badalar finos e espertíssimos contentamentos conseguissem a anulação da Resolução do Parlamento… o AO90 continuaria em vigor à mesma!
Caso tal académica hipótese vingasse, por alguma absurda conjugação astral, isso teria um inegável significado político, de facto, mas não resolveria de forma alguma o problema. Apenas o adiaria. Por mais 10 anos? 20? 50? Ou para todo o sempre?
Pior ainda: esta propalada “solução” que afinal não resolve coisa alguma iria criar (como aliás tem criado) na opinião pública um efeito de desmobilização total. Pois claro, se “como eles dizem” (e até são autoridades na matéria, ui, verdadeiras sumidades), basta liquidar a RCM 8/2011 para acabar com o AO90, então para que raio há-de a gente continuar a ralar-se com o assunto?
2. Será José Sócrates o único culpado no “caso AO90”?
Quanto a este particular, despacha o autor do artigo o seguinte: «(…) saber se deve escrever-se em português ou nessa mixórdia linguística a que já se está dando a designação de acordês ou socratês, imposta, violenta e inconstitucionalmente, por José Sócrates, a todos os Portugueses, como ortografia obrigatória, por mera resolução do seu Conselho de Ministros (a RCM 8/2011, de 25 de Janeiro); (…).»
Também isto faz parte da narrativa habitual dos que se atiram ao acessório desprezando o essencial.
A verdade, como aliás toda a gente sabe perfeitamente, é que José Sócrates não foi o único político responsável pela entrada em vigor do AO90 em Portugal e, de resto, não teve absolutamente nada a ver com a feitura do “acordo” propriamente dito. Simplesmente, neste caso, convém — porque encaixa perfeitamente na tal narrativa — isolar um único culpado para estabelecer uma relação de causa e efeito aparentemente óbvia: se “basta acabar com a RCM 8/2011 para liquidar o AO90”, então “cacemos” o tipo que em 2011 mandava cá na chafarica. E pronto, é ele o culpado, o único culpado, mate-se, esfole-se e depois interrogue-se o tipo.
Ora, Sócrates é um dos culpados pelo “Estado a que isto chegou”, em termos de património linguístico, mas tem tantas culpas no cartório (neste particular, bem entendido) como Cavaco Silva e Santana Lopes. Sócrates esgalhou a RCM 8/2011, é verdade, e foi sob a sua alçada que o AO90 entrou em vigor, também é verdade, mas Cavaco é que foi o “pai da criança”, digamos assim: foi ele, na época em que foi Primeiro-Ministro, quem literalmente inventou o AO90. E depois despachou o seu mandarete favorito, Santana, para o Brasil, com a incumbência única de assinar aquela porcaria abjecta “em nome de Portugal”. Mais tarde, quando se alçou à Presidência (2006-2016), o mesmo Cavaco conviveu alegremente — apenas no que ao camartelo diz respeito — com o seu Primeiro Ministro Sócrates (2005-2011) durante cinco anos; inimigos de estimação, ao que consta, mas em perfeita, evidente sintonia acordista.
Se Cavaco (O Esfíngico), Santana (O Bacano) e Sócrates (O José) foram indubitavelmente os principais verdugos da Língua Portuguesa, o primeiro como mandante, o segundo como mandado, o terceiro como executor, há ainda outros políticos aos quais podem e devem ser assacadas responsabilidades históricas pesadíssimas.
E essas responsabilidades assacáveis a outros nada têm a ver com a RCM 8/2011, que foi uma consequência e não a causa, resultam do facto de os tais outros políticos terem dado seguimento (e aprovação), sem pestanejar, à inacreditável vigarice perpetrada entre 2004 e 2006: em 2004 foi assinado o II Protocolo Modificativo, que o Brasil assinou de imediato, em 2005 Cabo Verde subscreveu-o também e em 2006 S. Tomé e Príncipe fez o mesmo. Pronto, ficou assim, já com O José como Primeiro-Ministro e O Esfíngico na Presidência, consumada a mentira de Estado: com a aprovação do Protocolo por três membros, o AO90 entrava automaticamente em vigor em todos os Estados da CPLP.
O José (com o Esfíngico em Belém) ressuscitou o AO90 das catacumbas onde estava mumificado desde 1992 e depois engendrou, com, entre outros, Lula da Silva (O Doutor), a mais nojenta fraude política alguma vez criada para viabilizar a delapidação sistemática do património cultural, histórico e identitário português. Isto sim, isto é que foi a coisa “imposta, violenta e inconstitucionalmente, por José Sócrates, a todos os Portugueses, como ortografia obrigatória”. Comparar sequer isto com a aprovação da RCM 8/2011 é, no mínimo, ridículo; o II Protocolo é um monstruoso elefante, a RCM é aquilo que apreciam paquidermes: “amendoins”.
Evidentemente, além destes, que são os principais responsáveis — O Esfíngico com O Bacano (ambos PSD) e O José (PS) com O Doutor (PT, que é como se diz “PS” em “brasileiro”) –, poderíamos apontar muitos outros nomes de políticos envolvidos, sempre em maior, nunca em menor grau, na tramóia a que se convencionou chamar “acordo ortográfico”.
Exercício fastidioso em demasia, porém. Bastará referir, por junto, os deputados que aprovaram a RAR 35/2008 — o real fulcro do problema, como não me canso de repetir. Foi esta parlamentar Resolução o corolário de toda a tramóia, a cereja no topo da vigarice, o truque de saída para a mentira de Estado.
Tentar partidarizar a questão, tapando um olho para só ver culpas nos adversários políticos, é não apenas intelectualmente desonesto como sumamente venenoso para esta Causa, que é nacional e não tribal, que é de todos contra alguns e não de alguns contra este ou aquele.
Atirar sistemática e exclusivamente ao alvo errado, não apenas falhando como até ignorando o verdadeiro cerne do imbróglio, confundir o binómio causa e efeito com o efeito que causa um binómio, é — com a devida vénia — apenas mais do mesmo, ou seja, nada.
Opinião
O ministro da Cultura e o AO/90
E eu pergunto: o ministro da Cultura é ministro de quê, se o não for da língua?
Carlos Fernandes
“Público”, 08.04.18———————-
Sempre houve, e continuará a haver, ministros louvados por competentes e, bem ou mal, ministros criticados por incompetentes. Não obstante estas frases vulgares, eu não pretendo nem me atrevo a classificar, ou adjectivar, o actual ministro da Cultura, até porque o conheço mal e não é meu costume fazer juízos à ligeira.
Sempre houve, e continuará a haver, ministros louvados por competentes e, bem ou mal, ministros criticados por incompetentes. Não obstante estas frases vulgares, eu não pretendo nem me atrevo a classificar, ou adjectivar, o actual ministro da Cultura, até porque o conheço mal e não é meu costume fazer juízos à ligeira.
Dito isto, apenas vou comentar as declarações do ministro ao DN, em 10 de Março, e ainda bem que, por estas declarações, me deu a oportunidade de interpelar um membro do Governo quanto à aplicação do AO/90, ou melhor, do que se diz ser o AO/90.