À laia de suplemento, este artigo de Miguel Sousa Tavares, publicado há mais de 18 anos, completa na perfeição o “post” anterior sobre Caetano Veloso e a sua recente “conversão” (?) à verdade histórica. Esperemos agora ouvir, na primeira pessoa, a devida retractação pública por parte deste (por vezes) zangadíssimo cantor. Puxemos cada qual de sua cadeira, por conseguinte, para que possamos esperar sentados.
.
«Mas não vejo porque é que nós, por razões diplomaticamente correctas, haveremos de ficar envergonhadamente calados, a mendigar que venha comemorar connosco quem acha que não fomos mais do que uns facínoras – como já sucedeu com a Índia, nas comemorações da viagem do Gama. Se o Brasil entende que Portugal é a mancha na sua História, paciência. É como se nós nos lembrássemos de repudiar a nossa herança romana ou árabe: o ridículo seria só nosso.»
Miguel Sousa Tavares
Desculpem lá o Cabral
(…)
“Se Caetano (Veloso) levanta a voz contra os desmandos dos colonos portugueses, o nosso coração confusamente imperialista sobressalta-se” – escreveu António Mega Ferreira, aqui, na segunda-feira passada, numa muito interessante reflexão sobre este equívoco luso-brasileiro, que a mim também me dá muito que pensar.
Tal como vejo as coisas, há duas atitudes habituais, do lado de cá, e ambas são causa de ilusões: uma, é a tal nostalgia imperial, que talvez seja uma fatalidade de quem algum dia foi Império, e que, na prática, se traduz em alguns desejos tidos como verdades de todos os tempos, tais como a ficção do “país-irmão” ou a presunção de que os brasileiros, só porque falam a mesma língua, hão-de gostar tanto de nós quanto nós gostamos deles; outra, é uma subserviência institucional perante o Brasil, da parte de alguns “abrasileirados oficiosos”.
A questão próxima – as declarações de Caetano Veloso – é apenas um detalhe, mas o detalhe é elucidativo. Preparava-me eu, entusiasmado, para ir a correr comprar bilhete para o espectáculo de Caetano no Parque das Nações, quando dei comigo a pensar se estaria certo ir a um concerto comemorativo dos 500 anos da descoberta do Brasil, ouvir um brasileiro que afirma que “o que Portugal veio fazer ao Brasil foi sugar, sugar, sugar e matar índios.” Se isto é o que ele pensa que Portugal foi fazer ao Brasil, a pergunta óbvia é o que vem ele fazer a Portugal. E como é que nós nos sentiremos a aplaudi-lo no Parque das Nações? Eu sinto-me mal.
Talvez conviesse começar por explicar aos brasileiros que o que se comemora para o mês que vem é apenas a viagem de Cabral: o que Portugal foi fazer ao Brasil, em 1500, foi a descoberta daquilo que existia para lá do imenso “mar oceano”. É isso que está escrito num dos mais belos textos desta nossa língua comum, verdadeiro acto fundador do Brasil, que é a carta de Pero Vaz de Caminha. Compreendo que os índios brasileiros não estejam entusiasmados com a perspectiva de verem comemorada a sua “descoberta”. Compreendo pior que vagamente crioulos, como Caetano Veloso, se juntem ao protesto. Mas o que não consigo acreditar é que haja um só ser inteligente no Brasil que reduza o significado do acto científico, histórico e cultural da descoberta do Brasil à matança de índios ou ao saque do ouro de Minas. Falando claro: morreram mais índios na Amazónia, por acção dos brasileiros, nos últimos 30 anos do que morreram nos 300 anos de colonização portuguesa; e sai mais ouro da Amazónia, numa semana, do que tudo o que Portugal de lá tirou durante três séculos.
Já vi este tipo de argumentação, sobre o extermínio dos índios pelos colonizadores portugueses e espanhóis, usado várias vezes e sobretudo por historiadores anglo-saxónicos. Mas, curiosamente, onde Portugal e Castela estiveram, sobravam e sobram nativos e por onde passaram os outros, não sobra nada. A verdade é que há sempre dois lados para ver a mesma história: o Portugal que matou índios brasileiros também foi o Portugal que lá teve um padre Vieira ou o Portugal que aqui tinha um primeiro-ministro, chamado Pombal, que publicou decretos concedendo terras, dinheiro e alfaias aos colonos portugueses que se casassem com índias (com os sacramentos da Santa Madre Igreja e tudo) e se fixassem no território – com isso fixando as fronteiras que o Brasil independente herdaria e de que goza até hoje.
Decerto que cometemos muitos e vastos crimes de colonização, dos quais o pior de todos foi a escravatura de negros levados de África para o Brasil. Mas não há nada de mais falacioso do que julgar a História pelos padrões éticos contemporâneos. Se o critério fosse aplicável universalmente, nada mais restaria da História da Humanidade do que um imenso e incompreensível relato de barbaridades. Os negros que levámos como escravos para o Brasil são hoje uma parte substancial dos brasileiros. Podemos ficar eternamente a lembrar e a pedir perdão por esse crime, também ele fundador do Brasil. Mas talvez que para os actuais brasileiros descendentes dos escravos da costa ocidental de África fosse mais útil a interrogação sobre os motivos por que, fora do futebol e do samba, não existe hoje um só negro em posição de destaque na vida brasileira (tirando o infeliz prefeito de São Paulo, criatura política do sr. Paulo Maluf).
Sinceramente, não sinto aquilo que Mega Ferreira refere como a incapacidade de Portugal ou os portugueses se “refazerem da perda daquele pedaço precioso de Império”. Primeiro que tudo, porque, por maior que seja a tal nostalgia imperial, não acredito e não sinto que o vírus permaneça vivo quase 200 anos. Depois, porque, tendo feito a minha descoberta do Brasil, como quase todos os portugueses, pelo eixo Rio-São Paulo, não senti que naquela fantástica civilização de cidades e praias houvesse, fosse a que nível fosse, o mais leve vestígio da nossa marca. Pelo contrário, sempre achei que o Brasil é um país à parte, não apenas totalmente diferente de Portugal, como de qualquer outro país que eu conheça. Só mais tarde, viajando pelo Nordeste, Norte e Amazónia, é que comecei a dar-me conta do que terá sido a dimensão da empreitada lusitana naquele continente. E, certamente não por coincidência, foi quando comecei a descobrir também as teses de alguns intelectuais brasileiros, como João Ubaldo Ribeiro, que tendem a reduzir a colonização portuguesa aos seus crimes e que ensaiam a justificação dos males actuais de que o Brasil padece com a herança da colonização portuguesa. Simplificando, a história terá sido assim: até 1820, Portugal explorou, saqueou, matou, destruiu. Do “grito de Ipiranga” para cá, “o povo brasileiro” (do qual, estranhamente desaparecera, com a partida de D. Pedro IV para Portugal, qualquer cromossoma português), tem-se esforçado para das ruínas erguer um país.
De tão absurda, esta versão histórica tem qualquer coisa de patológico. O Brasil foi descoberto há 500 anos, é independente há quase 200: estamos a falar de uma eternidade, em termos de construção de um país, para mais tão rico como o Brasil. Ocorre lembrar que, no mesmo ano em que a América foi descoberta se pôs fim à ocupação árabe da Península. Lembraria a algum espanhol ou português, mesmo que grosseiramente ignorante, lastimar-se hoje da herança dos mouros?
Há, nestas atitudes, uma verdadeira tentativa de reescrever a História: como não se pode apagar o facto de o Brasil ter sido descoberto e colonizado pelos portugueses (apesar de ter sido a única colónia, desde o Império Romano do Oriente, que chegou a ser sede do império), é como se fosse forçoso e patriótico abjurar esse passado. Mas, pese a alguns brasileiros, não foi a Inglaterra, nem a França ou a Holanda, nem sequer a Espanha, a matriz europeia do Brasil: foi um pequeníssimo e insignificante país, hoje como ontem, quem se lançou nessa desmedida aventura, muito para além do imaginável.
Quando hoje, por exemplo, a maior reserva de riquezas naturais do Brasil é constituída pela imensa superfície da Amazónia, talvez os brasileiros não saibam que devem a sua posse ao tal Pombal, que no seu gabinete no Paço, para lá mandou um tal Luís de Albuquerque com a missão de construir sete fortes que constituíssem a linha de fronteira defensiva da Amazónia e o símbolo da soberania brasileira em todo o território virgem. E talvez não saibam que alguns desses fortes, como o do Príncipe da Beira, no Acre, foram erguidos com pedras de granito levadas de Portugal por mar, transportadas de barco Amazonas acima e carregadas por homens e animais, selva adentro, numa desumana empreitada que hoje ninguém se atreveria a repetir. Tanto que, pelo menos, um desses fortes era, há uns anos atrás, ocupado pelo Exército brasileiro com a mesmíssima missão para que o Marquês de Pombal o mandou fazer.