Dia: 29 de Maio, 2018

Manual de Patranhas

«O que faz um acordo ortográfico entre diferentes países que falam a mesma língua? Simplesmente estabelece regras sobre como grafar as palavras da mesma forma nesses vários países. Ou seja: a língua, suas variantes, suas gramática, seus léxicos, suas prosódias, nada disso se altera. Alteram-se sutilmente pequenas questões de acentuação, hifenização, e, em raros casos, da ortografia de algumas palavras – em Portugal grafava-se “facto”, aqui grafamos “fato”. »

Mais uma espectacular e pública demonstração da forma despudorada como o Brasil se considera já absoluto dono e senhor de um idioma a que funcionários brasileiros chamam, por mera conveniência diplomática, “língua portuguesa”.

Neste risível textículo, a impressionante concentração de mentiras (e de outras tantas asneiras)  é indício seguro de que, ao contrário do que garantem alguns mercenários tugas,  os brasileiros não apenas se julgam os verdadeiros “donos da língua” como também consideram que o “acordo ortográfico de 1990”  é o documento segundo o qual Portugal abdica da sua Língua nacional.

Este concentrado de patranhas está redigido em “puro” brasileiro (com o seu léxico próprio, que não existe em mais parte alguma, e com as suas exclusivas construções frásicas), reflecte apenas a perspectiva neo-imperialista e os interesses geopolíticos do Brasil, refere somente casos (ortográficos, semânticos, prosódicos) brasileiros e destina-se exclusivamente ao público brasileiro (minimamente letrado, claro).

Portugal é mencionado uma única vez e, ainda por cima, para ficar associado a uma calinada de todo o tamanho (fato/facto). Os “outros países” (a CPLP), que não foram vistos nem achados na preparação do caldinho mas que servem na perfeição para fazer número, quando ao Brasil dá jeito, são olimpicamente ignorados pelo autor deste pequeno Manual de Patranhas.

Novas regras, mas a língua é a mesma

O fato de que quase todos os países que têm a língua portuguesa como língua oficial terem aderido ao acordo é extremamente benéfico

Rodrigo Tadeu Gonçalves
“Gazeta do Povo” (Brasil),

 

Um acordo ortográfico em nada influi diretamente no funcionamento de uma língua. Uma língua e seu sistema de escrita são duas entidades diferentes, de naturezas diferentes. O que se costuma afirmar sempre que o tema, polêmico, sem dúvida, aparece entre pessoas de vários graus de instrução, varia levemente em torno do tema da dificuldade de se aprender português. O que é difícil, para as pessoas, é a experiência de aprender regras e listas de exceções gramaticais e ortográficas na escola, ou seja, passar pelo processo de letramento e aprendizagem de diferentes níveis e variedades da própria língua.

Ocorre que a língua escrita, ou a possibilidade de escrever uma língua, é um sistema artificial e normatizado por seus usuários (não apenas pessoas, mas também instituições, formadas, claro, por usuários da língua), mas, antes de tudo, secundário e acidental com relação à existência de uma língua em si. Como seres humanos, usamos a língua naturalmente há muito mais tempo do que somos capazes de usar um sistema de representação escrita para ela. Até hoje, adquirimos naturalmente a faculdade da linguagem (oral ou, no caso dos surdos, gestual – o que dá no mesmo em termos de complexidade e completude como sistema linguístico), mas só aprendemos a escrita através de instrução – escolar ou de outro tipo. Ou seja, a linguagem é de alguma forma, inata, mas a escrita, não. E os primeiros sistemas de escrita, sejam eles alfabéticos, ideográficos ou variações dessas possibilidades, decerto não contavam com instituições externas compostas de pessoas e normas reguladoras para que todos grafassem as mesmas palavras da mesma maneira.

Até muito recentemente os sistemas de escrita sobreviviam relativamente bem sem a necessidade dessas estruturas. Hoje em dia, contudo, e já desde alguns séculos, a ampliação das possibilidades de circulação de documentos escritos tornou cada vez mais importante que instituições e governos dispusessem de mecanismos de normatização dos sistemas ortográficos (os Vocabulários Ortográficos, como o da Academia Brasileira de Letras, são documentos importantes nesse sentido), especialmente através de Acordos Ortográficos, que, em nosso caso, podem ser internacionais.

O que faz um acordo ortográfico entre diferentes países que falam a mesma língua? Simplesmente estabelece regras sobre como grafar as palavras da mesma forma nesses vários países. Ou seja: a língua, suas variantes, suas gramática, seus léxicos, suas prosódias, nada disso se altera. Alteram-se sutilmente pequenas questões de acentuação, hifenização, e, em raros casos, da ortografia de algumas palavras – em Portugal grafava-se “facto”, aqui grafamos “fato”.

O fato de que quase todos os países que têm a língua portuguesa como língua oficial terem aderido ao acordo é extremamente benéficolivros podem ser impressos e lidos em vários desses países sem grande necessidade de adaptação, por exemplo.

Ou seja: o acordo ortográfico foi bom para a língua portuguesa? Na medida em que mais pessoas têm acesso a regras claras sobre como grafar sua própria língua (especialmente em documentos oficiais, livros etc.), mais facilidade e possibilidade de circulação a língua possui – mas isso apenas quanto a sua modalidade escrita. De resto, o que a língua ganha ou perde? Nada. Tirando alguns saudosistas que sofrerão por muito tempo com a queda do trema na linguiça, a língua não mudou. O que mudou foi a ortografia, o sistema de representação escrita..  Como vimos, este não se adquire naturalmente. Precisamos da escola para isso. Mas já precisávamos antes. Pouco muda. Aprendemos algumas novas regras sobre como grafar as palavras e a língua que sempre foi nossa e que adquirimos naturalmente desde bebês continua a ser nossa. Nem mais, nem menos.

Rodrigo Tadeu Gonçalves é professor de Letras na UFPR e diretor da Editora UFPR.

[Transcrição integral de “Novas regras, mas a língua é a mesma“, publicação do jornal brasileiro “Gazeta do Povo” de 28.05.18. Inseri “links” com “texto alternativo” que abrem em novo separador. ]

Ah, então está bem

Guilherme de Oliveira Martins parece ter, como já aqui dei conta, ressurgido de repente da sombra em que felizmente se havia refugiado. Desta vez bota figura, em flagrante contraste com a sombra, numa entrevista ao “Sol”.

De entre o seu emaranhado, confuso e um bocadinho esotérico murmúrio, destaco apenas uma piquena tranche que me pareceu poder interessar a cerca de duas pessoas, e dessa tranche trincho alguns dos nacos mais suculentos (com o devido respeito, é claro, como sempre, uiui).

(…)

Uma parte importantíssima do nosso património é a língua e muitos consideram que o Acordo Ortográfico é um atentado à língua. Uma vez que adere ao acordo, presumo que não o vê como uma desvirtuação do português…

Mais importante do que tudo é a língua viva. A língua portuguesa é hoje falada por 230 milhões, um pouco mais, de pessoas em todos os continentes. No final do século será falada por mais de 400 milhões e as duas línguas ibéricas juntas serão, no final deste século, faladas por mais de mil milhões de pessoas. Dois dos ensaios que tenho neste livro são de homenagem a um grande amigo meu que foi um crítico severo do acordo ortográfico.

Vasco Graça Moura?

Respeitei sempre a sua posição, nunca tivemos qualquer discussão sobre esse tema. Soube sempre o que ele pensava e costumo dizer que ‘sou agnóstico em matéria do Acordo Ortográfico’.

O que significa isso?

Significa que o mais importante não é o Acordo. Em Inglaterra a Reforma deu como consequência que a Bíblia fosse escrita em língua vulgar logo no século XVI. A Bíblia do Rei James é de algum modo o cânone linguístico, por isso não precisam de um acordo ortográfico. Com o português, é preciso perceber que o Acordo Ortográfico de 1990 se sucede a outros acordos ortográficos, não foi uma decisão momentânea. Temos de ter consciência de que a língua portuguesa não é nossa propriedade. Um dos capítulos deste livro é sobre essa questão e sobre a importância de nós cultivarmos a língua. E cito o António Ferreira, d’ACastro, que salienta que o mais importante é preservar a língua viva. Entendermo-nos. A questão da língua não é uma questão de gramáticos, é uma questão de cidadania. Por isso o cultivar a língua é cultivar a sua sintaxe, é cultivar a forma clara e inequívoca de exprimirmos ideias e de comunicarmos uns com os outros. Eu diria que o grande desafio perante o qual nos encontramos é aprender e ensinar a falar bem. A comunicarmos bem.

[Semanário “Sol”, 28.05.18 (excerto)]

«agnóstico em matéria do Acordo Ortográfico (…) significa que o mais importante não é o Acordo.»
Ah, então está bem, é assim como a diferença entre um ateu crente e um fundamentalista islâmico alérgico à nitroglicerina ou com horror a sangue. Ou seja, não se percebe nada. Mas pronto, aqui o que interessa ao depoente é mesmo tecer considerações sobre o inverso e o seu contrário ou, como de costume, em conformidade com a imagem de marca da sua circunspecta pessoa, não querendo nunca significar coisa alguma: “o mais importante não é o Acordo”, diz, mas não diz o que seria então o mais importante. Paleio de chacha, em suma. Debitar a receita do verdadeiro coelho à caçador teria iguais relevância discursiva e densidade intelectual, com a notória diferença de que o coelho come-se e o paleio é intragável.

«Em Inglaterra a Reforma deu como consequência que a Bíblia fosse escrita em língua vulgar logo no século XVI. A Bíblia do Rei James é de algum modo o cânone linguístico, por isso não precisam de um acordo ortográfico.»
Ah, então está bem, já se sabe, os ingleses são uns chatos, aquilo é uma pepineira, bolas, quatro séculos sem uma única “reforma ortográfica”, mas que chatice,  estes bretões são tontinhos, toc toc toc, como diria Obélix. E “por isso não precisam de um acordo ortográfico”, convenhamos, é uma expressão muitíssimo bem esgalhada, caramba, de um rigor científico esmagador: não fosse o Rei James, não fosse a Bíblia, raios, e lá se ia o “cânone linguístico” pelo cano abaixo, os “bifes” nesse caso iriam mesmo precisar de “reformas” e de “acordos” à portuguesa, ou seja, uma a cada 20 anos. Assim, nada feito, a Bíblia do tal James (outro cromo que tal) é que, “de algum modo”, irra, fixou “o cânone linguístico”, pronto, acabou-se, os ingleses nem sabem o que perderam com a sua maldita fixação por coisas fixas, cambada de nabos.

«Com o português, é preciso perceber que o Acordo Ortográfico de 1990 se sucede a outros acordos ortográficos, não foi uma decisão momentânea.»
Ah, então está bem. Fica por conseguinte explicada a lógica (por exemplo) dos “serial killers”: assim que se lhes descobre mais uma vítima salta logo um defensor oficioso do género, rebrilhante de sapiência, garantindo que o assassino em série, váláver, até já tem um longo e recheado currículo, coitadinho, haja compreensão, o último morto “não foi uma decisão momentânea”, este último “sucede a outros”, portanto compreende-se. E acrescenta, reforçando a sua “ideia” que “é preciso perceber” a coisa, a lógica inatacável que vale tanto para assassinar pessoas consecutivamente como para assassinar a Língua periodicamente, são dois vícios aborrecidos, vá, é como fumar ou andar a meter pó nas ventas, abater quando em vez uns tipos é o mesmo que abater de vez em quando umas “consoantes mudas”, uns acentos, uns hífenes e assim.

«Temos de ter consciência de que a língua portuguesa não é nossa propriedade.»
Ah, então está bem. Porém, dear William, se não é nossa, nesse caso é propriedade de quem? Da Guiné Equatorial? De Timor-Leste? Da CPLP? Do Montepio? Da Santa Casa da Misericórdia? Ou… Não! Pode lá ser! Com certeza não quer dizer que a língua portuguesa é propriedade do Bras… Não, repito! Não, não e não! É impossível que aquela observação sobre os “230 milhões” (dos quais 210 são brasileiros, por acaso) tenha algo a ver com direitos de propriedade patrimonial, histórica e identitária, enfim, repito, é impossível que estivesse sequer a insinuar semelhante coisa. Que diabo, sejamos sérios, ninguém em Portugal — exceptuando os vendidos, mercenários e agentes do putativo II Império brasileiro — sequer admite, nem nos seus mais horríveis pesadelos, que andem nossos governantes agora, sendo o AO90 o contrato de comodato, a entregar a propriedade da Língua Portuguesa a uma nação estrangeira!

Não é nada disso, pois, não, hem?!

Ah, então está bem.

 

[Imagem de topo, medalha da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul,
de: Banco Central do Brasil]