Ah, então está bem

Guilherme de Oliveira Martins parece ter, como já aqui dei conta, ressurgido de repente da sombra em que felizmente se havia refugiado. Desta vez bota figura, em flagrante contraste com a sombra, numa entrevista ao “Sol”.

De entre o seu emaranhado, confuso e um bocadinho esotérico murmúrio, destaco apenas uma piquena tranche que me pareceu poder interessar a cerca de duas pessoas, e dessa tranche trincho alguns dos nacos mais suculentos (com o devido respeito, é claro, como sempre, uiui).

(…)

Uma parte importantíssima do nosso património é a língua e muitos consideram que o Acordo Ortográfico é um atentado à língua. Uma vez que adere ao acordo, presumo que não o vê como uma desvirtuação do português…

Mais importante do que tudo é a língua viva. A língua portuguesa é hoje falada por 230 milhões, um pouco mais, de pessoas em todos os continentes. No final do século será falada por mais de 400 milhões e as duas línguas ibéricas juntas serão, no final deste século, faladas por mais de mil milhões de pessoas. Dois dos ensaios que tenho neste livro são de homenagem a um grande amigo meu que foi um crítico severo do acordo ortográfico.

Vasco Graça Moura?

Respeitei sempre a sua posição, nunca tivemos qualquer discussão sobre esse tema. Soube sempre o que ele pensava e costumo dizer que ‘sou agnóstico em matéria do Acordo Ortográfico’.

O que significa isso?

Significa que o mais importante não é o Acordo. Em Inglaterra a Reforma deu como consequência que a Bíblia fosse escrita em língua vulgar logo no século XVI. A Bíblia do Rei James é de algum modo o cânone linguístico, por isso não precisam de um acordo ortográfico. Com o português, é preciso perceber que o Acordo Ortográfico de 1990 se sucede a outros acordos ortográficos, não foi uma decisão momentânea. Temos de ter consciência de que a língua portuguesa não é nossa propriedade. Um dos capítulos deste livro é sobre essa questão e sobre a importância de nós cultivarmos a língua. E cito o António Ferreira, d’ACastro, que salienta que o mais importante é preservar a língua viva. Entendermo-nos. A questão da língua não é uma questão de gramáticos, é uma questão de cidadania. Por isso o cultivar a língua é cultivar a sua sintaxe, é cultivar a forma clara e inequívoca de exprimirmos ideias e de comunicarmos uns com os outros. Eu diria que o grande desafio perante o qual nos encontramos é aprender e ensinar a falar bem. A comunicarmos bem.

[Semanário “Sol”, 28.05.18 (excerto)]

«agnóstico em matéria do Acordo Ortográfico (…) significa que o mais importante não é o Acordo.»
Ah, então está bem, é assim como a diferença entre um ateu crente e um fundamentalista islâmico alérgico à nitroglicerina ou com horror a sangue. Ou seja, não se percebe nada. Mas pronto, aqui o que interessa ao depoente é mesmo tecer considerações sobre o inverso e o seu contrário ou, como de costume, em conformidade com a imagem de marca da sua circunspecta pessoa, não querendo nunca significar coisa alguma: “o mais importante não é o Acordo”, diz, mas não diz o que seria então o mais importante. Paleio de chacha, em suma. Debitar a receita do verdadeiro coelho à caçador teria iguais relevância discursiva e densidade intelectual, com a notória diferença de que o coelho come-se e o paleio é intragável.

«Em Inglaterra a Reforma deu como consequência que a Bíblia fosse escrita em língua vulgar logo no século XVI. A Bíblia do Rei James é de algum modo o cânone linguístico, por isso não precisam de um acordo ortográfico.»
Ah, então está bem, já se sabe, os ingleses são uns chatos, aquilo é uma pepineira, bolas, quatro séculos sem uma única “reforma ortográfica”, mas que chatice,  estes bretões são tontinhos, toc toc toc, como diria Obélix. E “por isso não precisam de um acordo ortográfico”, convenhamos, é uma expressão muitíssimo bem esgalhada, caramba, de um rigor científico esmagador: não fosse o Rei James, não fosse a Bíblia, raios, e lá se ia o “cânone linguístico” pelo cano abaixo, os “bifes” nesse caso iriam mesmo precisar de “reformas” e de “acordos” à portuguesa, ou seja, uma a cada 20 anos. Assim, nada feito, a Bíblia do tal James (outro cromo que tal) é que, “de algum modo”, irra, fixou “o cânone linguístico”, pronto, acabou-se, os ingleses nem sabem o que perderam com a sua maldita fixação por coisas fixas, cambada de nabos.

«Com o português, é preciso perceber que o Acordo Ortográfico de 1990 se sucede a outros acordos ortográficos, não foi uma decisão momentânea.»
Ah, então está bem. Fica por conseguinte explicada a lógica (por exemplo) dos “serial killers”: assim que se lhes descobre mais uma vítima salta logo um defensor oficioso do género, rebrilhante de sapiência, garantindo que o assassino em série, váláver, até já tem um longo e recheado currículo, coitadinho, haja compreensão, o último morto “não foi uma decisão momentânea”, este último “sucede a outros”, portanto compreende-se. E acrescenta, reforçando a sua “ideia” que “é preciso perceber” a coisa, a lógica inatacável que vale tanto para assassinar pessoas consecutivamente como para assassinar a Língua periodicamente, são dois vícios aborrecidos, vá, é como fumar ou andar a meter pó nas ventas, abater quando em vez uns tipos é o mesmo que abater de vez em quando umas “consoantes mudas”, uns acentos, uns hífenes e assim.

«Temos de ter consciência de que a língua portuguesa não é nossa propriedade.»
Ah, então está bem. Porém, dear William, se não é nossa, nesse caso é propriedade de quem? Da Guiné Equatorial? De Timor-Leste? Da CPLP? Do Montepio? Da Santa Casa da Misericórdia? Ou… Não! Pode lá ser! Com certeza não quer dizer que a língua portuguesa é propriedade do Bras… Não, repito! Não, não e não! É impossível que aquela observação sobre os “230 milhões” (dos quais 210 são brasileiros, por acaso) tenha algo a ver com direitos de propriedade patrimonial, histórica e identitária, enfim, repito, é impossível que estivesse sequer a insinuar semelhante coisa. Que diabo, sejamos sérios, ninguém em Portugal — exceptuando os vendidos, mercenários e agentes do putativo II Império brasileiro — sequer admite, nem nos seus mais horríveis pesadelos, que andem nossos governantes agora, sendo o AO90 o contrato de comodato, a entregar a propriedade da Língua Portuguesa a uma nação estrangeira!

Não é nada disso, pois, não, hem?!

Ah, então está bem.

 

[Imagem de topo, medalha da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul,
de: Banco Central do Brasil]