O homem do pântano (3.ª parte)

Note-se o endereço de email @gmail (grátis). Numa organização da ONU é um bocadinho esquisito, não?

O ponto é este, reitere-se e reforce-se: Guterres não devia ter feito aquilo. Não existe qualquer justificação, motivo ou sustentação legal para a sua presença, na qualidade de Secretário-Geral da ONU, num evento privado, particular e pago. Por todas as razões, não apenas de ordem política mas também ética e moral (se é que tal coisa existe nos meandros políticos) e ainda por uma questão de legitimidade.

Afinal, em quantos ou em quais “dias da língua” (além daqueles que a ONU de facto reconhece) esteve Guterres ou qualquer dos seus antecessores no cargo? Em quantos ou em quais eventos similares ao promovido pela CPLP esteve presente (e discursou) Guterres ou qualquer dos seus antecessores no cargo?

Afinal, sendo a CPLP uma efabulação — sem paralelo no mundo — inventada a pretexto de uma pretensa “unificação da língua” (AO90), coisas em relação às quais a maioria da população portuguesa demonstra total indiferença para com a efabulação e absoluta rejeição da invenção, então o cidadão António Guterres, que por acaso é português e que ainda mais por acaso é Secretário-Geral da ONU, patrocinou com a sua presença uma organização particular e apoiou uma determinada tendência de opinião… minoritária, ainda por cima.

Afinal, para que serve o Dia Internacional da Língua Materna? Ou tal efeméride, essa sim, oficialmente reconhecida pela ONU, não inclui a Língua Portuguesa e, por conseguinte, o Secretário Guterres tem de ir “comemorar” para “os jardins” (porquê “nos jardins”?) uma novilíngua inventada ad-hoc para dar cabo da original?

Afinal, se o dia 5 de “maio” foi inventado em 2005, segundo a Wikipédjia lusôfuna, ou foi reinventado em 2009, segundo os jornais, então quantas vezes foi anteriormente “comemorada” essa “efeméride” na ONU? E em quantas dessas “vezes” esteve presente o antecessor de Guterres, Ban Ki-moon, que foi Secretário-Geral de 2007 a 2016?

Afinal, qual o motivo para que nem à Commonwealth nem à Organisation internationale de la Francophonie (OIF) tenha ocorrido a mesma peregrina ideia de ir “comemorar” para “os jardins” (ou nos interiores) da ONU, em eventos abrilhantados por Sua Excelência? Terá sido por não haver em Nova Iorque empresas de catering especializadas em, respectivamente, corned beef e champignons?

O ridículo tem de facto limites… afinal! Para toda a gente menos para os iluminados que pariram a CPLP mai-la sua aldrabice-mor, o AO90.

Guterres não devia e também não podia ter feito aquilo. Para entender algo assim tão “complicado” basta ler as atribuições do cargo: no “profissiograma” do Secretário-Geral da ONU não consta absolutamente nada que sequer remotamente se assemelhe a comparecer e, muito menos, a discursar em eventos privados “nos jardins” da sede da Organização.

Mesmo na informal qualidade de simples convidado, o que não foi o caso; ao titular daquele cargo em concreto estão liminarmente vedadas, pela própria natureza das suas altas funções políticas,  de âmbito transnacional, quaisquer associações de causa e efeito: o facto de um político aparecer em determinado sítio a determinada hora é algo que apenas a ele mesmo e aos ocasionais circunstantes interessa. Quando Guterres vai a um casamento ou a um funeral, por exemplo, isso não confere o direito aos noivos de anunciar nos convites que a boda tem o alto patrocínio das Nações Unidas, assim como não confere ao defunto poderes para mandar gravar na sua lápide tumular os seguintes dizeres: “Aqui jaz Fulano de Tal. Morreu feliz porque o seu discurso fúnebre foi proferido pelo Secretário-Geral da ONU, em nome de todos os Estados-membros. Paz à sua alma (e obrigadinho aos Estados-membros e ao Sr. Guterres)”.

Pouco ou nada importa a contra-informação difundida pelas estruturas ligadas ao Governo brasileiro e ainda menos importa a propaganda brasileirófona da agência “Lusa”. Toda essa intoxicação que profissionais regiamente pagos impingem por sistema à opinião pública tuga (só a esta, porque no Brasil ninguém está “nem aí”) vale rigorosamente zero; apenas uns quantos portugueses, os mais “distraídos” e os mais comprometidos, engolem as patranhas da propaganda neo-imperialista. O Brasil quer tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, entre outros objectivos estratégicos expansionistas. O resto é puro paleio.

Mesmo ou ainda que a contra-informação tenha origem em fontes aparentemente legítimas e insuspeitas, como é o caso da “nossa” Presidência. Do actual PR já tudo se espera, quanto a este assunto, pelo qual parece nutrir um inusitado, estranho, muito mal resolvido ressentimento. Surpresa nenhuma pode ainda advir, portanto, de quem acha que “Portugal tem de lutar para dar a supremacia ao Brasil“. Daí não ser nada de estranhar a cobertura que também este outro político deu à recente fraude em forma de arraial.

No “Público” (despacho da agência Brasilusa): «Marcelo saúda todos os cidadãos da CPLP no Dia da Língua Portuguesa. Chefe de estado destaca a celebração desta data pelo secretário-geral da ONU, nos jardins da sede das Nações Unidas, em Nova Iorque.»

No “site” da Presidência o “tiro” é ligeiramente corrigido (a escolha das palavras nunca é casual ou arbitrária), mas a mentira mantém-se ali também no essencial: «Nesta data, a língua portuguesa é igualmente celebrada, pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, nos Jardins das Nações Unidas, em Nova Iorque, (…)»

Portanto, a fraude circense “nos jardins” da ONU não apenas teve ampla cobertura mediática nos habituais canais de intoxicação acordista, como recebeu até o alto patrocínio do Presidente da República (portuguesa), que assim — mais uma vez — associou a sua bandeira pessoal (verde) à mentira de Estado.

Toda esta gente, escusado será dizê-lo, conhece perfeitamente as verdadeiras motivações por detrás de arraiais populares como o 5 de “maio”. A “celebração” do Dia da Língua de Vaca ( e da Cultura do Feijão)  “nos Jardins das Nações Unidas, em Nova Iorque”, serviu de cortina de fumo  para festivamente amaciar isto:

Economia e Conhecimento

Murargy defende uma maior preparação dos lusófonos para desafios em áreas como economia e difusão do conhecimento.

Uma cimeira marcada para Brasília deve renovar compromissos para uma nova orientação do bloco.

“Estamos preparando uma cimeira que se vai se realizar no Brasil. Ainda não tem data marcada. É uma cimeira histórica. Para além de celebrar o vigésimo aniversário, ela também vai adotar uma declaração que lança a nova visão estratégica que aponta novos rumos do futuro. Nós estamos neste momento a pensar numa Cplp que temos de  consolidar e ter maior visibilidade aproximando-se cada vez dos seus povos e criando condições para que cidadãos da nossa comunidade sintam-se mais próximos. Que eles são parte da organização e que esta não é apenas de governos.”

(célula brasileira na ONU)

É que já nem disfarçam (muito). Fazem uma patuscada para o povão enfardar uns “snacks de almoço” e pronto, já está, venha de lá então a “nova visão estratégica”, ou seja, uma negociata aqui, uma negociata ali; arrumadas as tendas do arraial, Brasília irá ditar “uma nova orientação do bloco” e os figurantes da CPLP renovarão os seus “compromissos”, o que significa que “facilitarão” a Brasília mais uma negociata aqui, outra negociata ali. Nisto consiste a “nova visão estratégica” e para isto serviu o arraial com figurantes brasileirófonos, patrocinado por figurinhas várias e com a bênção de figurões notórios.

Acho compreensível, de certa forma, que o comum dos mortais se borre de medo quando esbarra nestas tenebrosas tramas políticas, mas confesso que me faz um bocadinho de impressão a impressionante cobardia que, pelos vistos, a alguns não incomoda nada alardear e a outros até apetece impudicamente expor quando o assunto é este — o II Império brasileiro e seus tugas serviçais.

Guterres cometeu um enorme erro — político e ético — em 5 de “maio” de 2018. O país de que se livrou em 2001 para evitar o “pântano político” não se livrou ainda nem do político nem do pântano: o AO90 e a CPLP.