O tanas

Ocorrência: Fraude na SPA

No jornal Público foi ontem publicado electronicamente, e hoje na edição em papel, o artigo (e notícia) «Rui Vieira Nery premiou como júri obra de que é um dos coordenadores», escrito por Rodrigo Nogueira.

Este é um facto do qual eu fui o primeiro a tomar conhecimento… fora da Sociedade Portuguesa de Autores, cujos principais (ir)responsáveis vieram a revelar-se cúmplices numa situação de autêntica fraude intelectual, e privando-me, e ao meu livro «Nautas – O início da Sociedade da Informação em Portugal» (e, eventualmente, a outros autores e a outras obras), de um prémio, com o nome de José Mariano Gago, já falecido e saudoso professor, investigador e ministro, nesta capacidade tendo dado início, em meados da década de 90, a um processo, a um projecto, de modernização tecnológica do país, do Estado e da sociedade civil, corporizado no «Livro Verde para a Sociedade da Informação em Portugal», editado em 1997, e que, precisamente, constituiu o pretexto e o ponto de partida para a minha carreira enquanto jornalista especializado em tecnologias da informação e da comunicação. Reuni os que considero serem os melhores textos dessa carreira num volume publicado no ano passado, quando se assinalou o 20º aniversário do «Livro Verde…».

Custaria a acreditar que um livro feito por causa de José Mariano Gago, e em homenagem (explícita) a José Mariano Gago, não vencesse a primeira edição de um prémio com o nome de José Mariano Gago, com o objectivo declarado de «ser atribuído ao autor português do melhor livro de divulgação científica publicado no ano anterior». Porém, infelizmente e até escandalosamente, foi isso mesmo o que aconteceu. Para o artigo do Público dei o meu depoimento e, deste, excertos são citados, resumindo correctamente o que sucedeu desde 22 de Maio último: a minha surpresa após saber qual tinha sido a obra «vencedora», considerando as suas características, incluindo em especial o estar «escrita» em sujeição ao AO90; a minha ainda maior surpresa ao descobrir, quase por acaso, que um dos membros do júri era também um dos co-autores da obra – veja-se, e confirme-se, quem coordena(rá) o volume Nº 20 daquela; o meu contacto junto da SPA, com conhecimento do Presidente da Direcção daquela, José Jorge Letria, apelando a que a entrega do prémio fosse cancelada, o que não aconteceu; a minha mensagem a Carlos Fiolhais (que, enquanto director da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, recusou publicar o meu livro «Nautas» naquela editora, isto depois de se ter queixado, no seu livro «A Ciência em Portugal», de que faltavam obras escritas por jornalistas de ciência) sugerindo-lhe, e a José Eduardo Franco, que renunciassem ao prémio, e da qual, significativamente, não recebi resposta.

No momento em que escrevo e publico este relato não há indícios de que este caso de «compadrio cultural», de atropelo à ética, de «promiscuidade professoral», vá ter consequências, mais concretamente, e obviamente, (algumas) demissões. Afinal, é tão só mais um exemplo de como neste país certas pessoas sentem ter a autoridade e a impunidade para fazerem o que, como e quando querem, não obedecendo a regras ou adoptando regras diferentes para elas próprias. No entanto, e apesar de particularmente grave, este «incidente» com a SPA não constitui o único exemplo recente, e em que eu estou de algum modo envolvido, de prémios literários organizados e/ou atribuídos de forma duvidosa. Antes, mas já igualmente neste ano de 2018, (um júri nomeado pel)a Associação Portuguesa de Escritores concedeu o seu Prémio de Crónica e Dispersos Literários, não a «Nautas» mas sim a «A Alma Vagueante» de Mário Cláudio… que, por «coincidência» e curiosamente, é igualmente presidente da mesa da assembleia geral da APE! Todavia, aqui houve um regulamento, divulgado publicamente, que indicava claramente como (única?) incompatibilidade a de membros do júri não poderem ser autores concorrentes ao prémio. Contudo, será isso suficiente para afastar as suspeitas? (Também no MILhafre.)

Octávio dos Santos , “blog” Octanas, 14.06.18

«”Fiquei intrigado com a tipologia da obra vencedora, esperava que fosse algo mais recente, não uma obra estilo enciclopédia, com textos antigos da cultura portuguesa e abrangendo algumas áreas que nem são ciências”, partilha, acrescentando que também achou estranho o projecto “seguir o Acordo Ortográfico de 1990”, contra o qual – “e bem”, comenta – a SPA tem vindo a lutar.»

Rui Vieira Nery premiou como membro do júri obra de que é um dos coordenadores

Rodrigo Nogueira
“Público”, 13.06.18

Na sua primeira edição, o Prémio José Mariano Gago de Divulgação Científica foi para Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco, pela coordenação do projecto Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Rui Vieira Nery, que fez parte do júri e vai coordenar um dos 30 volumes do projecto, diz que não há qualquer conflito de interesses.

Rui Vieira Nery fez parte, com Miguel Lopes e Elvira Fortunato, do júri que a 22 de Maio atribuiu ao físico Carlos Fiolhais e ao historiador José Eduardo Franco o primeiro Prémio José Mariano Gago de Divulgação Científica, uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), pela coordenação do projecto Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Mas é também o coordenador de Primeiros tratados de música, o vindouro 20.º volume daquela colecção, cuja equipa reúne mais de 170 especialistas, investigadores nacionais e internacionais.

Contactado pelo PÚBLICO, o musicólogo, historiador, professor associado do departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e ainda director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas afirma não ver um conflito entre a sua posição de jurado e a circunstância de ser um dos coordenadores do projecto. “Levantei a questão na reunião do júri e toda a gente concordou que não seria um problema. Eu próprio não vi nisso qualquer problema. O trabalho não está publicado, não é premiável. Não existe. Eu tenho uma encomenda para um volume, pode ser péssimo, quando vier a sair”, argumenta.

À data da entrega deste prémio criado pela SPA, e que tem o valor pecuniário de 2500 euros, ainda só tinham sido publicados oito dos 30 volumes deste projecto a três anos que reunirá obras fundamentais de diversas disciplinas, da geografia à gastronomia, do teatro ao direito, da poesia à física, da medicina à química e à botânica, entre outras. Ainda assim, o site da SPA especifica que o prémio, cujo vencedor foi anunciado a 18 de Maio, diz respeito “aos 30 volumes” da obra. Nery diz não estar a par das publicações do site.

Também o discurso de aceitação do prémio, publicado no blogue De Rerum Natura, que Carlos Fiolhais partilha com outros autores, refere que o valor pecuniário recebido foi “entregue ao projecto”, para poder compensar o esforço dos investigadores que nele colaboraram.

Em sucessivos telefonemas ao longo de mais de uma semana, o PÚBLICO tentou obter acesso às actas do júri. Paula Cunha, administradora da SPA, explicou que tal não seria possível, visto conterem deliberações internas sobre as obras. Questionada sobre se a SPA teria recebido alguma queixa relativa a esta situação, a mesma administradora disse ter conhecimento apenas de uma reclamação, de um candidato preterido pelo júri.

Esse tal candidato poderá ter sido Octávio dos Santos, que concorreu ao prémio com Nautas, volume editado em 2017. Na altura em que submeteu a sua obra, explicou ao PÚBLICO, não havia informação disponível nem sobre a composição do júri nem sobre o regulamento “ao contrário”, assegura, “do que acontece com os prémios literários”. Só soube quem tinha ganho o prémio “no próprio dia da entrega”, através de um blogue.

“Fiquei intrigado com a tipologia da obra vencedora, esperava que fosse algo mais recente, não uma obra estilo enciclopédia, com textos antigos da cultura portuguesa e abrangendo algumas áreas que nem são ciências”, partilha, acrescentando que também achou estranho o projecto “seguir o Acordo Ortográfico de 1990”, contra o qual – “e bem”, comenta – a SPA tem vindo a lutar.

Foi aí que quis contestar. “Sem grande esperança, apenas para tentar marcar uma posição”, diz. Tentou obter mais informações sobre a obra e encontrou a listagem dos volumes no site do Círculo dos Leitores – o único sítio onde se pode encomendar Obras Pioneiras – e apercebeu-se do envolvimento de Rui Vieira Nery. “Custa-me a crer que as várias pessoas envolvidas não tenham percebido que haveria aqui uma incompatibilidade que me parece óbvia”, afirma.

“Contactei por telefone e correio electrónico a SPA, perguntando o que iriam fazer e esperando que o resultado lógico se concretizasse, que o prémio fosse retirado”, relata. Não teve grande resposta. “Informaram-me de que a mensagem tinha sido comunicada, enviada ao júri do prémio”, declara. Também contactou Carlos Fiolhais. “Esperava que ele, enquanto de homem de honra, devolvesse o prémio, mas não recebi resposta.”

Contrariando a informação publicada no site da SPA, tanto Nery quanto Paula Cunha reiteram que o prémio foi dado aos coordenadores da obra. “Foi dado à colecção, não individualmente. Por isso é que quem ganhou o prémio foram eles [Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco], pela direcção da obra, não foi nenhum dos volumes”, esclarece Cunha.

Nery, que também preside à assembleia geral da SPA, reitera: “O prémio é atribuído a um ou mais autores que tenham publicado uma obra de divulgação científica alargada no ano a que se refere. Neste caso, foi atribuído ao Carlos Fiolhais e ao José Eduardo Franco como coordenadores do projecto editorial tal como [ele] existe neste momento. Ninguém dá um prémio a uma obra que não existe.”

“Como responsável de um volume, não tenho nada que ver com a coordenação da obra nem com o projecto global da obra, que foi o que foi premiado. Do ponto de vista ético, esta é a minha posição”, conclui.

Rodrigo Nogueira

“Público”, 13.06.18