Dia: 17 de Julho, 2018

«Admirável Língua Nova (Parte VIII)» [Manuel Matos Monteiro, “Público”, 16.07.18]

Admirável Língua Nova (Parte VIII)

Antes do Acordo, há UMA ortografia: “Passeámos na Avenida da Liberdade sem grandes expectativas.” Com o Acordo, há oito ortografias para a frase. E num livro acordizado há facilmente milhões de ortografias possíveis para o mesmíssimo texto.

 

Passeámos na Avenida da Liberdade sem grandes expectativas.

Passeámos na Avenida da Liberdade sem grandes expetativas.

Passeámos na avenida da Liberdade sem grandes expectativas.

Passeámos na avenida da Liberdade sem grandes expetativas.

Passeamos na Avenida da Liberdade sem grandes expectativas.

Passeamos na Avenida da Liberdade sem grandes expetativas.

Passeamos na avenida da Liberdade sem grandes expectativas.

Passeamos na avenida da Liberdade sem grandes expetativas.

Antes do Acordo, há UMA ortografia: “Passeámos na Avenida da Liberdade sem grandes expectativas.” Com o Acordo, há oito ortografias para a frase.

Com o Acordo, “expectativa” aparece nos dicionários acordizados como sendo de dupla grafia em Portugal, porque se entende que há quem pronuncie e há quem não pronuncie. (São as trémulas “pronúncias cultas”.) Se um aluno escrever “expectativa” no singular e “expetativas” no plural, fazendo uso da facultatividade que o Acordo lhe dá, deverá o professor assinalar a anomalia?

A maiúscula inicial da “Avenida da Liberdade” passa a ser opcional, como resulta da Base XIX, 2.º, i).

E reza a Base IX, 4.º: “É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos) […].”

Chamamos, chamámos, falamos, falámos, brincamos, brincámos, trocamos, trocámos — é facultativo distinguir o tempo pretérito do tempo presente. Se o contexto for ambíguo, o leitor que se amanhe. Em frases que aparecem desgarradas e desprovidas de contexto (na televisão, na imprensa, na Internet), a salgalhada é total. Numa época de hiperinformação tombando a cada instante, em que muitos só lêem os títulos, que mal tem a interpretação contrária quanto ao tempo em que se situa a acção ou quanto ao próprio sentido da frase? “Jogamos mal” ou “pagamos mal”, numa fonte acordizada, pode ser “jogámos mal” ou “pagámos mal”.

Uma palavra hoje muito na moda (que não me suscita simpatia alguma) é “expectável”. O Portal da Língua Portuguesa e a Infopédia, por exemplo, acolhem “expectável” e “expetável” (pronúncia que passam a legitimar e a fomentar…[i]). O verbo acordizado pode escrever-se “expectar” e “expetar”. Ou seja, no pretérito perfeito, temos “nós expetámos/expetamos/expectámos/expectamos”. Não tenho conhecimento de outra língua em que na mesma pessoa, no mesmo tempo, no mesmo verbo, haja quatro ortografias.

No exemplo acima, se o verbo não fosse “passear”, mas um de dupla grafia, teríamos não oito, mas dezasseis formas ortográficas de escrever a frase. Se ainda acrescentarmos o inacreditavelmente facultativo acento de “dêmos”[ii] (para distinguir de “demos”), teremos trinta e duas ortografias para a frase, parágrafo ou texto. Se tivermos o nome de um curso (por exemplo, Medicina), também aqui passa a ser opcional a maiúscula… e vamos em sessenta e quatro ortografias. Um santo (ou santa) seguido do respectivo nome e eis outra nova facultatividade quanto à maiúscula inicial… cento e vinte e oito ortografias. O nome de um edifício (Palácio da Cultura/palácio da Cultura)… e outra facultatividade… duzentas e cinquenta e seis. O nome completo de uma igreja, opcional também a maiúscula inicial… quinhentas e doze ortografias. O nome de uma rua, mais uma nova facultatividade (Rua do Ouro/rua do Ouro)… mil e vinte e quatro ortografias. Basta mais uma palavra de dupla grafia e chegamos às duas mil e quarenta e oito ortografias. Com as facultatividades dos acentos, das maiúsculas iniciais e com as duplas grafias das palavras pronunciadas ora com ora sem consoante, bastarão vinte casos e teremos um milhão quarenta e oito mil quinhentas e setenta seis formas de escrever o mesmo texto. E assim sucessivamente multiplicando por dois. (Os números começam a ser terrivelmente assustadores, o Acordo torna-nos multimilionários das ortografias.)

Num livro acordizado, há facilmente mais do que vinte casos de facultatividades, ou seja, há milhões de ortografias possíveis para o mesmíssimo texto.

Se a isto somar as diferentes interpretações quanto às locuções que perderam os hífenes (e quanto às próprias consoantes mudas), porque os dicionários e os livros de estilo com o Acordo não se entendem [VER ADMIRÁVEL LÍNGUA NOVA PARTE III], a cabeça explode, não apenas pelo número de ortografias possíveis, mas por não haver dois dicionários ou prontuários acordizados que não tenham muitas divergências quanto àquilo que é a ortografia de certa locução ou palavra.

Ainda agora, nas notícias sobre o Mundial, li em órgãos de comunicação social que seguem o Acordo: “oitavos-de-final”, “quartos-de-final”, “ponta-de-lança” ora com ora sem hífenes, com flutuações dentro do mesmo órgão. Mero exemplo: num canal televisivo (o 5 na minha casa), no espaço de minutos, consegui ler “oitavos-de-final” com e sem hífenes. Antes do Acordo, inquestionavelmente com hífenes. Depois, a salgalhada que faz saltar os olhos. (Se quereis a minha opinião, caros acordistas, com o vosso Acordo, deve ser sem hífenes, ainda que o espírito da lei seja inexcedivelmente ambíguo, como já demonstrei antes. Ou seja, ficais com “guarda-redes”, “defesa-central”, mas “ponta de lança”; com “oitavos de final” e “quartos de final”, mas “meias-finais”[iii].) [VER ADMIRÁVEL LÍNGUA NOVA PARTE II.]

Lembremos as palavras mágicas do Acordo: simplificar, uniformizar, internacionalizar a língua. Hoje, demonstrada a fraude em toda a sua extensão (algum brasileiro passou a comprar um livro português por este seguir o Acordo e vice-versa?), sobra apenas o argumento, ou pretexto, de que já não podemos voltar atrás, de que as crianças já aprendem assim, de que teríamos de imprimir novos livros — blá-blá-blá que esconde o vácuo: apenas a inércia e a obstinação do orgulho de quem não admite que criou e deixou criar um monstro metuendo e indomável permitem que o Acordo não seja atirado para o sítio das coisas que não prestam para nada. O caixote do lixo que não é reciclável.

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[i] O engenheiro informático João Miranda que trabalha em Praga escreveu-me numa mensagem de correio electrónico: “Uma das características interessantes do Acordo, que se presume ortográfico, é que interfere, esperada ou inesperadamente, com a pronúncia, em vez de interferir apenas com a ortografia. Houve quem mudasse a forma como sempre disse certas palavras (inconscientemente ou não), e, por outro lado, há palavras cuja pronúncia se impõe, porque os autores do Acordo [e aqueles que se viram obrigados a interpretá-lo, nem que fosse para fazer dicionários] acham que se deve dizer de determinada forma (e a grafia impõe essa leitura). ”

[ii] Veja-se o seguinte passo de Camilo Castelo Branco, em O Santo da Montanha: “Já que morreu a serpente, dêmos duas cabriolas; que, medrosos de seus olhos, nada até ora fizemos.” Perceba e sinta como o tempo verbal sem o acento é lido de outra forma. E já há Camilo acordizado por aí. Pegue na frase “Para que demos tudo?” e veja como a ausência do acento altera o sentido (além de aquele “para” poder tratar-se de um “pára”).

[iii] Lemos na Infopédia, num “artigo de apoio”, que “quartos-de-final” perde os hífenes com a “explicação”: “Com o Acordo Ortográfico, não se usa hífen na maioria das locuções.”

Mas porque acolhem outras com hífenes?! Não explicam. Tal como não explicam como se distingue a maioria da minoria. Porque o Acordo também não o faz na sua prosa enrolada da Base XV, 6.º.

[“Público”, 16.07.18. Textos desta série anteriormente reproduzidos aqui: Parte VII, Parte VI, Parte V, Parte IV, Parte III, Parte II, Parte I. ]