Dia: 30 de Julho, 2018

«Os livros e os papéis que vão para o lixo» [JPP, “Público”, 28.07.18]

Os livros e os papéis que vão para o lixo

Agora que ando com um grupo de amigos e voluntários “aos papéis”, estou numa posição privilegiada para saber onde milhares de livros e arquivos vão parar.

José Pacheco Pereira
“Público”, 28.07.18

Livros são uma das coisas que nos nossos dias têm mais probabilidade de ir parar ao lixo. Não exagero, é mesmo assim. As razões são cada vez mais habituais: despejos ou mudanças de casa sob a pressão das novas rendas e leis do inquilinato, e as novas casas por sua vez não têm espaço para os livros, divórcios, falecimentos, e “os meus filhos não se interessam por isto”. Não me cabe julgar, até porque estou consciente do drama que muitas vezes é esta separação de alguém dos livros de uma vida.

Mesmo quando são oferecidos a bibliotecas ou instituições, a resposta habitual é que não os querem. Conheço muitas destas histórias e podem-se compreender algumas das razões da recusa, e saber que, nalguns casos, não existem mesmo condições para os receber — nem pessoal para os tratar, nem espaço para os acolher, nem recursos para os conservar. Tudo isto é verdade. Mas estes “nãos” são também favorecidos por uma concepção “moderna” do que é uma biblioteca pública, com muita animação, Internet, jogos, música e DVD, e com uma enorme dificuldade em pôr as pessoas a ler livros. É um problema que transcende as bibliotecas, e que se relaciona com a dificuldade de manter, no mundo contemporâneo de distracções e rapidez, actividades “lentas” e silenciosas como a leitura.

Não é uma questão de ter qualquer fetichismo com os livros, mas a de registar uma clara desvalorização do valor patrimonial das bibliotecas que explica a demasiada pressa, desleixo e pouco cuidado em responder que não às ofertas, ou em encontrar alternativas que encaminhem os livros, em função da sua natureza, para outros destinos e outras necessidades. E por isso ou vão de imediato para o lixo, ou ficam uns anos em caixas para depois irem também para o lixo, para o bolor e para os bichos que os comem com mais vontade do que os humanos.

Esta desvalorização do carácter patrimonial das bibliotecas leva muitas vezes a considerá-los um “peso morto” que ninguém consulta. Também não tem de ser assim, porque há maneiras de dar vida ao “morto” com vontade e imaginação. Na verdade, as listas dos livros que nunca foram consultados, que alguns investigadores e bibliotecários fizeram, principalmente fora de Portugal, e que jazem nas estantes há décadas, sem nunca terem visto um olhar humano, são particularmente interessantes. Também não me custa perceber que a mesma falta de imaginação nas bibliotecas é o espelho do conservadorismo e apatia nos temas de investigação nas universidades. Por exemplo, eu gostava de ler alguma investigação sobre a “má” poesia (em edições de autor, mas não só), que enche estantes sobre estantes, por que é que é “má”, por que é que é escrita, é escrita por quem e quem é que acha que deve gastar dinheiro a publicá-la. Suspeito que algumas respostas não são as que pensamos ser óbvias.

Agora que ando com um grupo de amigos e voluntários “aos papéis”, estou numa posição privilegiada para saber onde milhares de livros e arquivos vão parar. Já se salvaram muitos e continuamos a fazê-lo, mas também já fomos buscar bibliotecas e arquivos literalmente ao lixo. E não estamos a falar de pequenas bibliotecas, ou de livros de refugo, se é que há disso. Estamos a falar de verdadeiras bibliotecas que não são ajuntamentos, e que contêm critérios de selecção e sinais da identidade de quem as fez, dedicatórias, notas nos livros, coerência entre si. E, ainda mais grave, estamos a falar de arquivos e papéis únicos, correspondência, manuscritos, etc., que, desaparecendo, fazem desaparecer com eles parte da nossa história. A micro, mas também a macro. Por exemplo, o lixo diz-nos que estão a desaparecer arquivos e livros que pertenciam a antigos altos funcionários coloniais, que estão a morrer e, com eles, parte da nossa história “ultramarina”. Voltaremos noutra altura aqui.

Tudo isto vem a pretexto de um acontecimento desta semana. Avisados por um amigo de que estava ao ar livre num sucateiro informal, muito informal, num improvável local, uma grande pilha de livros, fomos lá ver e conseguimos falar com o homem que os recebeu, para fazer um favor a uma junta de freguesia que os despejou de uma camioneta como lixo. O seu valor para o nosso homem é o do papel, neste caso cerca de tonelada e meia.

A fotografia acima mostra parte da pilha e engana. Havia à superfície manuais escolares (aliás, novos) e números do National Geographic, até porque é provável que haja mais do que uma origem para a pilha, mas por baixo estava uma muito boa biblioteca de História, com edições raras, dedicatórias, obras completas de vários volumes, uma muito boa secção de monografias locais, com relevo para Lisboa e a sua região, livros de ficção portuguesa e estrangeira, com destaque para edições dos anos 1940 e 1950, e o mais que adiante se verá, visto que apenas cerca de 10% do total foi visto e às pressas.

Tivemos sorte, pois não choveu e chegámos uma semana antes de os livros regressarem ao seu estado original de polpa de papel. Não tenho dúvidas de que, um pouco por todo o lado, é o que está a acontecer.

José Pacheco Pereira

[Transcrição integral de Os livros e os papéis que vão para o lixo” | Opinião | PÚBLICO, 28.07.18. A imagem no corpo do artigo é do autor, alojada no “site” do jornal. Destaques meus. Imagem de topo de: “Ephemera“.]

“Os curiosos protagonistas do activismo” (…)

«Um fenómeno relativamente recente, surgido com a vulgarização da Internet e em especial desde que foi inventado o conceito de “rede social”, é o das “causas de consumo”. Para haver “causas de consumo”, evidentemente, é necessário que existam “consumidores de causas”. São estes os que se abastecem periodicamente de (mais) uma causa, a qual juntam a outra ou a outras igualmente do seu agrado, por assim dizer, ou usando a nova para substituir uma que já não agrada (isto é raro mas acontece), que passou de moda ou que por algum outro motivo se extinguiu. Há consumidores para toda e qualquer causa, assim como há causas para todos os gostos, há as apetecíveis para espíritos mais combativos, as que encaixam que nem uma luva em perfis mais para o conservador ou no seu oposto diametral, há umas causas mais fofinhas e outras mais rijas e farfalhudas, há as causas cutchi-cutchi e as que têm imenso salero, enfim, isto das causas é uma alegria, uma causa por dia nem sabe o bem que lhe fazia, há por aí causas a granel, meta lá mais uma no bornal (era para rimar com “granel” mas não deu, ora bolas, diz que ele não há cá “bornel”).» [“Uma história (muito) mal contada” VI]

«Ilustremos o paradigma (ou axioma, vá) com um caso flagrante de “consumidora de causas” que aterrou de pára-quedas na ILC-AO: fazia ela então uma campanha chamada “destrua as ondas, não as dunas” (acho que era qualquer coisa assim, se não era isto exactamente era algo igualmente exótico), até tinha um “blog” sobre a matéria (seja lá isso o que for), até tinha um grupo no Facebook (olha, mas que original, hem, grande surpresa, não estava nada à espera) e até tinha, por fim, uma “ideia” para propor à ILC: ela faria campanha pela ILC e, em troca, a ILC fazia campanha pelas dunas…» [“Uma história (muito) mal contada” VI]

«Contrastar o conceito de inactivismo com a imensa, radical, total diferença do seu oposto será talvez um modo eficaz de demonstrar ambos em simultâneo: o verdadeiro activismo (cívico) resume-se a não ceder, não conceder, não desistir e, sobretudo, fazer algo — por pouco que seja — para que ao menos o que se pretende não esmoreça e que se não conceda ao inactivismo um minuto de tréguas, um milímetro de tolerância, um só átomo de crédito.» [Inactivismo (2)]

Os curiosos protagonistas do activismo verde

 

Revista “Sábado”, 28.07.2018
Maria Henrique Espada

Há “associações” que não passam de páginas de Facebook, ligações ao BE, grupos dentro de grupos e até uma comunidade pelo sexo livre nos protestos contra o furo de Aljezur. E há movimentos com outra estrutura que admitem que isto põe um problema de credibilidade aos ambientalistas.

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Alentejo Litoral pelo Ambiente. É um dos promotores da manifestação de 14 de Abril, em Lisboa, “Enterrar de vez o furo, tirar as petrolíferas do mar”, e primeiro signatário da carta aberta a pedir a demissão do ministro do Ambiente. Ora, o que é o ALA? Não tem site, apenas uma página de Facebook gerida por Fátima Teixeira, que, na sua própria página de Facebook indica gerir ainda outra página, a Plataforma Transgénicos Fora, e trabalhar no Tamera – a comunidade alternativa do Sudoeste Alentejano, que, no seu site, no segmento “Investigação”, a par da Terra Deva (“ecologia espiritual”), exibe também referências à “sexualidade como poder sagrado”, “sexualidade e parcerias livres”, e conceitos mais difíceis de traduzir a leigos (“Ashram Político”, “Círculo das Pedras”, “Marisis”). Fátima Teixeira esteve a 21 de Abril a representar o ALA no debate Ainda é possível Parar o Petróleo?, em Vila Nova de Milfontes. E o Tamera, por sua vez, também foi um dos movimentos promotores da manifestação de dia 14.

Contactada a página de Facebook do ALA, quem respondeu afinal foi Eugénia Santa Bárbara, que em 2017 participou no protesto na marginal de Sines em que cerca de 10 pessoas se pintaram com tinta de choco para “simular um derrame de petróleo” e dizer não ao furo. Acabou por não ser possível o contacto (nunca por falta de disponibilidade da SÁBADO), e apenas ficou claro numa mensagem que o protesto de 7 de Julho, um cordão humano nas praias contra o furo, estava a ser organizado por outras pessoas, “os movimentos e organizações apoiam e divulgam”. Em resumo: o ALA é uma página de Facebook, com alguma ligação ao Tamera, e não parece ter corpos sociais nem foi possível saber se são 10 ou 100. E pelos vistos só deu o nome.

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