Os Maias na encruzilhada das escolhas
Muitos alunos, por causa do “negócio” das Aprendizagens Essenciais, não terão a oportunidade de estudar o mais admirável romance da nossa literatura.Carlos Reis 24 de Julho de 2018, 6:19
1. Quando entraram em vigor os actuais programas de Português do Ensino Secundário (ES), apoiei o que neles havia de reabilitação de um domínio curricular fundamental: o da Educação Literária. Havia razão para reparos, no tocante a escolhas de obras em alternativa, escolhas que, nalguns casos, me pareciam injustificadas; mas preferi (e sempre prefiro) valorizar o que se ganhava, em vez de criticar aquilo que me parecia discutível. Com as Aprendizagens Essenciais postas à discussão pública pelo Ministério da Educação (ME), o caso muda de figura. Sob os véus da autonomia das escolas e da flexibilização curricular, o ME desce mais alguns furos na exigência formativa dos alunos; fazendo-o, abdica da responsabilidade de garantir que todos eles, não apenas os que frequentam escolas privadas de elite, têm acesso àquilo que de mais significativo existe na nossa história literária. Veja-se o que está nas Aprendizagens Essenciais: “Estas aprendizagens repercutir-se-ão no projecto individual de leitura de cada aluno que desenvolverá o seu perfil de leitor a partir de uma selecção de leituras que negociará com o professor, tendo por referência não só o conjunto das obras que constitui referência para as actividades de educação literária (…) em aula mas também o Plano Nacional de Leitura.” Deixo de lado a duplicação da referência e observo isto: nos casos de Garrett, Herculano, Camilo, Eça, Antero e Cesário, o “negócio” faz-se com três autores, uma obra narrativa, um romance, seis poemas – e chega. 2. O assunto parece risível, mas é sério e terá consequências gravíssimas, como efeito de um atávico comportamento político em Portugal: o Governo quer marcar presença educativa; para tal, muda. Programas, metas, aprendizagens, critérios, seja o que for. Muda-se e não se pensa na estabilidade curricular, um factor relevante para ajudar a garantir uma formação harmoniosamente desenvolvida, mesmo sabendo-se que os currículos não são dogmas inamovíveis. Mas não é disso que trato agora. Prefiro centrar-me em dois temas decisivos, para pôr a nu aquilo que considero crucial: a lógica das escolhas “negociadas” é perversa, estimula a facilidade e gera efeitos antidemocráticos. 3. Primeiro tema: o cânone. Mesmo sendo esta uma matéria impopular, afirmo convictamente o seguinte: o Estado tem o dever de, como se faz noutros países, pensar um cânone de autores e de textos que estruture a Educação Literária no Ensino Secundário (é deste que estou a falar). Pensar um cânone não significa ditá-lo ex abrupto ou torná-lo coisa rígida; significa propô-lo, criar condições para que ele seja debatido e configurado, com base na tradição literária, no seu diálogo com a nossa identidade e com os valores que presidem a uma sociedade tolerante, multicultural e descomplexada relativamente ao que herdou. E significa também conhecer o lastro de saber acumulado em torno da nossa literatura, com a certeza de que não está aqui em causa um corpus mastodôntico; numa literatura que infelizmente não tem a amplidão de outras, um cânone mínimo e consensual talvez não vá além de uma vintena de títulos e de autores. Esse cânone não consente negócios, exige reflexão e aquele “honesto estudo” que contraponho à simplificação do ensino. (mais…)