Dia: 6 de Setembro, 2018

A tribo Matatuga

Como de costume, quando algo arde no Brasil (em sentidos figurado ou literal, como neste caso) ressurge, com redobrada fúria, essa estranha rotina a que se dedicam alguns brasileiros — não poucos e nem todos eles completamente maluquinhos —  cujo modo de vida consiste em, 200 anos depois da independência do seu país, invectivar o “colonizador”, enxovalhar Portugal, culpar os portugueses pelo caos em que aquele “país-continente” está cíclica e sistematicamente mergulhado.

O mais recente surto desta espécie de alergia histórica ocorreu a propósito do incêndio que arrasou por completo o Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Como muito bem assinala o jornalista Carlos Fino, em artigo publicado no jornal online “Tornado”, existe no Brasil um “velho estigma anti-lusitano”. E exemplifica o dito citando (in)certo indivíduo que, na rede anti-social Fakebook, publicou um chorrilho de disparates congratulando-se não apenas por ter ardido o museu nacional do seu país como, ou principalmente, porque o incêndio foi uma boa limpeza da memória brasileira: “Tudo o que apague do cenário brasileiro a lembrança daquele período nefasto (assim como de outros) é um alívio para mim e certamente para todos cujo sofrimento atual é uma herança daquela época.”  

Extraordinário. E foi nisto o indivíduo de imediato secundado por milhares de outros “índios” da mesma tribo, os Matatuga, a qual se distingue por uma terrível sanha persecutória com efeitos retroactivos (abarcando dois séculos) em relação a tudo aquilo que sequer cheire a português. Porque, forçosamente, segundo a respectiva “lógica” tribal, tudo o que vai bem no Brasil é brasileiro, mas se algo corre mal no Brasil então a culpa é dos tugas.

Na verdade, Carlos Fino não refere no seu texto um caso isolado. Não, de todo. Aquele é apenas mais um, se bem que ilustrativo do fenómeno, por assim dizer, e nem mesmo é dos piores, não é dos mais violentamente anti-lusitanos.

Por uma questão de pudor mental, devo confessar, tento esquecer imediatamente quejandos pedaços de esterco em que vou tropeçando; limito-me a seguir adiante raspando as solas dos sapatos, como toda a gente faz quando calha pisar “presentes” malcheirosos. 

Mas é fácil, havendo alguma espécie de interesse escatológico pela matéria, salvo seja, encontrar semelhantes poias, não apenas sobre Portugal e os portugueses em geral mas também sobre o AO90 em particular, já que este é uma das formas de revanche histórica a que se dedicam brasileiros e meia dúzia de vendidos.

Aí ficam duas amostras, ambas de comentários a vídeos do YouTube em que o tema é o “acordo ortográfico”. São apenas duas mas há lá muitas, de igual aspecto, consistência e cheiro; basta procurar, o que não é nada difícil se para tal houver estômago.   

gilberto apollinare 4 years ago
O mundo ira seguir o BRASIL pelo seu tamanho populacional, territorial, economico , e importancia no cenario internacional. Se portugal nao se aderir ao acordo imposto pelo BRASIL, ficara esquecido ainda mais. Portanto eu digo que; portugal depende do BRASIL e assim tem que continuar.

Mauro David 2 years ago
Não adianta alguns portugueses serem contra o acordo o fato é que já aconteceu. Quem mais usa essa linguá no mundo são os brasileiros, principalmente para os negócios no mundo a fora, um brasileiro compreende melhor, mas rápido e com clareza a sonoridade de um falante do idioma português africano. já um cidadão de Portugal falando português, é entendido porem com muita dificuldade, a sonoridade de um português falando é horrível, quase trágica. A cultura de Portugal não é um coisa que as pessoas falante de português pelo mundo gostaria de ter ou de saber, Portugal é desinteressante, sem cor, pobre de dinheiro de de espirito é um país preso, sem visão. Já o Brasil, eu nem preciso comentar.

Incêndio do Museu Nacional – Há brasileiros que aplaudem

O velho estigma antilusitano, que continua em boa parte a ser alimentado na escola, na historiografia, na literatura, no cinema e nos media do Brasil, deixa naturalmente marcas profundas.

“Jornal Tornado”, 03.09.18
Carlos Fino, em Brasília

Veja-se, por exemplo, esta reacção ao incêndio que consumiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, retirada do FaceBook
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Museu Nacional do Brasil: 1818 – 2018

Em Dezembro de 2015 ardeu o Museu da Língua Portuguesa de S. Paulo, agora arde o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Parece que o Brasil anda em maré de azar aos museus. Evitemos, porém, quaisquer aleivosias de trocadilhismo militante, como diria o célebre Odorico Paraguaçu, e limitemo-nos, para já, a dar conta da onda de emoção que o mais recente arraso provocou em ambos os lados do Atlântico.

Do lado de cá, o hype surpreendeu pela quantidade de manifestações de comoção e em especial pela qualidade, pelo tremendismo das mesmas.

Sem grande (ou nenhuma) surpresa, do lado de lá houve até manifestações de regozijo pela ocorrência. Fenómeno que será talvez de esmiuçar — porque tem sua piada — em  próximo “post”.

«Muita gente anda me dizendo que, por mais cruel que fosse o Império Brasileiro, isso não justifica que se destrua a sua memória. Concordo. Porém o que se perdeu não foi a verdadeira memória daquela época. Uma coisa é um museu que lembra e mostra os horrores de determinado período, como o holocausto, a segunda guerra mundial, etc. Desses museus saímos enojados com a crueldade humana. Outra coisa é um museu que CELEBRA uma época de horrores, como era o caso do Museu Nacional. Quem visitasse aquele palácio, agora em ruínas, como vocês acham que saía de lá, senão falsamente maravilhado com o período imperial?

O fogo não veio para devastar, mas para acender em nós a verdadeira visão da história. Veio como punição aos que a deixavam falsificar pela suntuosidade, pela beleza enganosa daquele antigo covil de tiranos.» [Robson Lucas de Oliveira, Facebook, 03.09.18]

Entrevista
Eduardo Viveiros de Castro: “Gostaria que o Museu Nacional permanecesse como ruína, memória das coisas mortas”

A tragédia do incêndio do Museu Nacional não deverá ser suficiente para abrir um debate sério no Brasil sobre o “descaso” a que tem sido votada a cultura, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Este é “um país onde governar é criar desertos”.

Alexandra Prado Coelho
“Público”, 04.09.18

Eduardo Viveiros de Castro, 67 anos, é um dos mais conhecidos antropólogos brasileiros, autor de vários livros e do conceito de perspectivismo ameríndio [teoria a partir da visão ameríndia do mundo], e professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a instituição que na noite de domingo para segunda-feira foi destruída pelo fogo, que arrasou quase totalmente uma colecção de mais de 20 milhões de peças, com um valor incalculável. Falou ao PÚBLICO por telefone a partir do Rio.

Qual é a dimensão da perda do Museu Nacional do Rio de Janeiro para o Brasil e para o mundo?
O Museu Nacional talvez fosse o lugar mais importante do Brasil em termos do seu valor como património cultural e histórico, não só brasileiro como mundial. Trata-se da destruição do ground zero, o lugar central que era o símbolo da génese do país como nação independente e continha um acervo inestimável, não só do ponto de vista da história da cultura e da natureza brasileiras mas com peças de significado mundial. Foi destruída toda a colecção de etnologia indígena, inclusive de vários povos desaparecidos, foi destruída toda a biblioteca do sector de Antropologia, e foi destruído o Luzia, o fóssil humano mais importante e antigo das Américas. É uma perda que não tem como reverter, não há nada que se possa fazer que mitigue, que amenize essa situação. Só se pode chorar em cima do leite derramado, que não adianta nada.

As causas últimas desse incêndio, todo o mundo sabe quais são. É o descaso absoluto desse Governo, e dos anteriores, para com a cultura. O Brasil é um país onde governar é criar desertos. Desertos naturais, no espaço, com a devastação do cerrado, da Amazónia. Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo. Estamos perdendo com isso parte da história do Brasil e do mundo, porque se trata de testemunhos com significado para toda a civilização.

É portanto uma perda com impacto a nível mundial.
Com certeza, tem impacto brasileiro, português, porque boa parte da história de Portugal estava nesse museu também, visto que foi a residência de D. João VI, e também da história mundial – a colecção de etnologia não tinha significado apenas para o Brasil pelo facto de os povos aqui representados habitarem essa parte do planeta, esses povos têm significado para a história da humanidade. Além disso, havia peças muito valiosas que não eram apenas de povos indígenas no território brasileiro, peças africanas, egípcias, etruscas.

É uma perda incalculável que se explica – não se justifica, mas explica-se – pelo descaso absoluto que todos os Governos, e esse Governo ilegítimo em particular, votam à cultura, com cortes dramáticos nos orçamentos da cultura e da educação, ameaças grave de desmontagem das universidades públicas [o Museu Nacional está ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro]. É um projecto de devastação, de criação de desertos, desertos no espaço e no tempo. A destruição do museu é um deserto no tempo, é destruir a memória, destruir a História.

E para si, em particular, o que é representa?
O Museu Nacional abrigava vários departamentos da Universidade. Era um museu de exposição, mas também de pesquisa, eu fazia parte do sector de pesquisa, de um programa de doutoramento em Antropologia. A minha relação com a parte física do museu, com os objectos, era bem menor do que a de vários colegas meus. A perda pessoal, imediata, para mim é a da Biblioteca de Antropologia, que devia ter uns 200 mil títulos e que era um instrumento de trabalho fundamental para a minha actividade como docente.

Essa perda atingiu-me de maneira directa, perdemos toda uma biblioteca construída ao longo de 50 anos. Como etnólogo, relativamente à colecção do Museu Nacional, significou para mim a perda de toda a memória material desses povos que foram destroçados pelo colonialismo europeu e que estavam ali como testemunhas mudas da história sinistra que foi a invasão da América pelas potências europeias.

A biblioteca de Antropologia tinha manuscritos, volumes insubstituíveis
Manuscritos, menos, porque a biblioteca central do Museu Nacional já não estava no edifício que foi destruído, estava num anexo, e é essa que contém as obras raras. A do programa de doutoramento era muito moderna, tinha toda a produção antropológica, sociológica, histórica, dos últimos 50 anos. Embora teoricamente possa ser refeita, não há dinheiro para o fazer. De resto, os fósseis, as borboletas, os insectos, as colecções de estudo, isso é insubstituível.

O que é que se deve fazer agora, perante este edifício queimado?
A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio.

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