«De Goa e Bombaim a Malaca, de Macau a Pequim, da Índia aos confins da Pérsia, da China e do Japão, os portugueses deixaram uma herança histórica e cultural que decidiram não honrar e eliminar. A lusofonia tornou-se um conceito brasileiro e africano, um conceito que nenhum resultado teve até hoje, a não ser a consequência de um Acordo Ortográfico inútil e destruidor da raiz latina da língua. Ou seja, tudo o que a lusofonia com esta matriz PALOP fez por Portugal foi pago por Portugal e ignorado por todos os países lusófonos. A política da língua, inexistente, serviu para o costume, a criação de um corpo de funcionários públicos e clientelas dos partidos, que existem sem missão e sem verba.»
Clara Ferreira Alves
CRAZY POOR PORTUGUESE
Clara Ferreira Alves
Abolir filmes asiáticos não nos ajuda, porque quem conheça a Ásia percebe que o futuro está no eixo do Pacífico e que o eixo do Atlântico está a terminar
Quando saiu do elevador deixou um perfume que entonteceu os sitiados. Orquídeas? Jasmim? Flores brancas das que crescem na Ásia por todo o lado. Os sitiados, que iam para andares diferentes do hotel, ficaram em silêncio a aspirar o cheiro do dinheiro. Tudo, naquela mulher, cheirava a dinheiro. A roupa de marca, a jóia discreta, o cabelo negro lacado, os sapatos de verniz e salto alto, mil euros desenhados por aquele senhor com nome francês que tem casa na costa alentejana. E isto sabendo-se que ao anoitecer a chuva cairia com violência, inundando as ruas e escorrendo nos declives e goteiras com o barulho de uma catarata. Aqueles sapatos nunca saíam à rua, eram sapatos de motorista e carro de luxo, de portas abertas à passagem por gente fardada. Por servos. Aqueles sapatos pertenciam a uma mulher chinesa rica. Podia ser de Xangai, Pequim, Singapura ou Hong Kong, podia ser de Banguecoque, era sem dúvida de ascendência chinesa. Conforme as sábias palavras do grande viajante árabe Ibn Batuta, o marroquino nascido em Tânger em 1304, em nenhuma parte do mundo se encontra gente mais rica do que os chineses.
A frase serve de epígrafe à novela de Kevin Kwan que deu origem ao filme “Crazy Rich Asians”, que bate recordes de bilheteira e que a Netflix tentou comprar sem conseguir. O filme parece que não será visto nas salas portuguesas. A distribuidora assim decidiu, por ser um filme habitado por actores asiáticos e que se passa no universo exclusivo dos multimilionários de Singapura. O filme, como o livro, não passa de um best-seller de aeroporto que vale pelo que mostra desta Ásia com dinheiro, muito dinheiro. Mostra uma parte de um mundo que, para os portugueses que deixaram de ser comerciantes, aventureiros e diplomatas, deveria ser mais bem conhecida e deveria despertar mais curiosidade. Abolir filmes asiáticos não nos ajuda, porque quem conheça a Ásia percebe que o futuro está no eixo do Pacífico e que o eixo do Atlântico está a terminar. Ali estão os países que determinarão a prosperidade mundial, e os Estados Unidos perceberam isso. Portugal permanece um dos países mais ignorantes e avessos a um continente onde fomos importantes, onde desembarcámos e comerciámos e missionámos, onde construímos e onde deixámos uma elite, pequena, é certo, que foi a única elite do império português. De Goa e Bombaim a Malaca, de Macau a Pequim, da Índia aos confins da Pérsia, da China e do Japão, os portugueses deixaram uma herança histórica e cultural que decidiram não honrar e eliminar. A lusofonia tornou-se um conceito brasileiro e africano, um conceito que nenhum resultado teve até hoje, a não ser a consequência de um Acordo Ortográfico inútil e destruidor da raiz latina da língua. Ou seja, tudo o que a lusofonia com esta matriz PALOP fez por Portugal foi pago por Portugal e ignorado por todos os países lusófonos. A política da língua, inexistente, serviu para o costume, a criação de um corpo de funcionários públicos e clientelas dos partidos, que existem sem missão e sem verba.
A ignorância da Ásia prejudica-nos. O nosso conhecimento do continente não pode resumir-se à diáspora emigrante de Macau ou a um pacote de turismo de massas numa praia da Tailândia. Ao contrário dos franceses, que mantiveram os laços com a Indochina, Portugal não estudou nem investiu. Nos mercados asiáticos, não se vê uma marca portuguesa, uma só, esqueçam o pastel de nata, que foi culturalmente apropriado, o que demonstra que perdemos a nossa vocação de comerciantes para nos tornarmos o que somos, um país a vender as pratas da família para poder comer. Portugal está a ser comprado pela China, em largas quantidades, e não nos importamos de vender sectores essenciais que determinarão a soberania e nos reduzirão a uma plataforma logística. A actual ministra do Mar anda por aí num enlevo a ver se vende por grosso os portos portugueses aos chineses, contrato que nenhum outro país da Europa, com excepção da Grécia, assinaria. Pelas implicações futuras e pela demonstração da incapacidade para administrar bem o que nos pertence. O que não for vendido à China será vendido a Singapura ou à Tailândia, como aconteceu com as sobras hoteleiras do império Espírito Santo, que se desmoronou em corrupções e humilhações. Será vendido a gente como a do mundo mostrado em “Crazy Rich Asians”, gente que tem uma visão do mundo determinada pelo privilégio e o poder do dinheiro. Conviria percebê-los melhor, visto que não existem filmes, nem existirão, sobre os interiores e corredores da nomenclatura comunista, constituída também por crazy rich asians.
Não existe gente mais rica do que os chineses, ou não existe gente mais ostensivamente rica do que os chineses. A nossa relação com a Ásia devia ser aprendida e cultivada, ou não passaremos, no tempo que aí vem, de novos funcionários. De servos de gente e de culturas que não conhecemos nem estudámos. E abriremos as portas à sua passagem. Portugal tem especialistas da Ásia, excelentes, que nenhum ignorante político português se lembraria de consultar, tão entretidos que andam com a intriga palaciana e a discussão do Orçamento, único tema de um país na indigência. Crazy poor portuguese.
[Transcrição integral de transcrição integral publicada no “blog ” Cadernos da Libânia de artigo, da autoria de Clara Ferreira Alves, publicado no semanário “Expresso” de 01.0918. A desortografia abrasileirada do original foi automaticamente corrigida pela solução Firefox contra o AO90 através da extensão FoxReplace do “browser”.]