«Para não falar do escandaloso chamado Acordo Ortográfico, uma vergonha e que nos quer obrigar a destruir a nossa língua.»
O autor deste artigo cita diversos exemplos da universal reciclagem da expressão (escrita e oral) na sua faceta mais evidente, isto é, o processo de uniformização em curso visando a destruição de qualquer forma de pensamento independente: «forma de controlar ideologicamente cada um de nós, obrigando-nos ao “pensamento único”».
Orwell deixou-nos, de facto, um arrepiante filme do seu (então) futuro, o qual é hoje a nossa (triste) realidade, com uma acuidade premonitória ao alcance de apenas uns poucos visionários — os que entenderam o imenso poder da linguagem e assim anteciparam («profecia do que se passa hoje») o que com ela fariam meia dúzia de facínoras.
Como de igual modo nos vamos apercebendo, em verificável, observável, extremamente simples silogismo (ou ainda mais simples relação de causa e efeito), sendo de todo impossível o controlo do pensamento através apenas do sequestro das palavras, então aqueles que tal controlo ambicionam dispõem de um último e ainda mais radical recurso: a destruição das palavras implicará necessariamente a aniquilação do pensamento.
«O objectivo da Novilíngua não é apenas oferecer um meio de expressão para a cosmovisão e para os hábitos mentais dos devotos do IngSoc, mas também impossibilitar outras formas de pensamento. Tão logo for adoptada definitivamente e a Anticlíngua esquecida, qualquer pensamento herético será literalmente impossível, até ao limite em que o pensamento depende das palavras. Quando esta for substituída de uma vez por todas, o último vínculo com o passado será eliminado.» [George Orwell, “1984”]
Uma arma perigosa à solta: a palavra
Carlos Aguiar Gomes
“Diário do Minho”, 27.09.18
“Quand l’atmosphère général est mauvais, le langage ne saurait rester indemne” (G. Orwell – 1946)
A revista francesa «Le Point», de 16 de Agosto pp dedicou a capa e uma série larga de páginas ao autor de “1984”, Eric Blair, conhecido pelo seu pseudónimo Georges Orwell. Li, com o maior interesse estas páginas. Muito interesse. Das muitas passagens dos artigos então e ali publicadas, cheias de interesse pela sua actualidade gritante, retive a que encima este artigo, verdadeira profecia do que se passa hoje.
Na realidade, “Quando a atmosfera geral é má, a linguagem não pode ficar imune”, tal como escreveu o citado autor em 1946, num artigo que publicou.
Olhemos e ouçamos o que se passa à nossa volta, numa “atmosfera” cultural, linguística e espiritual deletéria, depauperada e… manipulada escandalosamente com a nossa linguagem pobre, mentirosa, fraudulenta. Para não falar do escandaloso chamado Acordo Ortográfico, uma vergonha e que nos quer obrigar a destruir a nossa língua.
Mas há mais. Dou alguns exemplos da manipulação da linguagem, habilmente manipulada por ideologias que têm como objectivo a destruição dos nossos valores e da nossa identidade:
– Interrupção voluntária da gravidez – metáfora que se usa cada vez mais, para atenuar o peso e o significado verdadeiro do que é: o aborto. Assim, se apaga a noção de matar um bebé por nascer, tornando este vil acto aceitável por uma população que se recusa a pensar…
– Morte digna e assistida – outra metáfora mentirosa e falaciosa para dizer matar uma pessoa que, por compaixão, dizem, deve ser morta porque “pediu”…
– Namorado – companheiro com quem se vive sem vínculo civil ou religioso, de que se troca como quem muda uma camisa ao fim do dia…
– Acompanhantes de luxo – outrora eram as prostitutas que se faziam pagar bem e tinham aparência de “esposas”. Acrescentem-se os “prostitutos”, mais modernos…
– Desvio de fundos – metáfora, também, para amenizar o crime de roubo, normalmente chorudo e de gente importante…
– Elite – outra metáfora para dizer “os que mandam” bem ou mal, têm poder, mas raramente são modelos…
…E quantas mais palavras o leitor conhece que são verdadeiras radiografias de uma péssima atmosfera de uma sociedade doente e que são usadas constantemente pelos “opinion makers” que são os que, de facto, manipulando as palavras criam uma nova atmosfera intoxicada, poluída e malsã. Esta em que vivemos sem nos revoltarmos e recusarmos a usar a “novilíngua”, como disse Orwell, como forma de controlar ideologicamente cada um de nós, obrigando-nos ao “pensamento único”.
[Transcrição integral de Uma arma perigosa à solta: a palavra, da autoria de Carlos Aguiar Gomes, publicado no “Diário do Minho”, 27.09.18. Imagem de topo de: ePresse.]