Dia: 9 de Novembro, 2018

“Respeitar as culturas”

 

«Há coisas que ferem questões patrimoniais. Não há acordo possível se não houver negociação. A língua portuguesa não é só dos portugueses, nem só dos brasileiros, é também dos africanos. Se pensarmos isso, começamos a ter uma relação de equidade entre as culturas. Porque a nossa relação é de plano inclinado, de cima para baixo: podem ou não podem, é ou não é. E não é isso que ajuda, nem a alfabetização nem a difusão da língua portuguesa. E muito menos aquilo que é impossível fazer neste acordo: unir através da fonologia, uma vez que falamos todos [de formas] diferentes. Não uniu com o Brasil, desuniu, e parece que trouxemos mais problemas do que afinal tínhamos antes.»

Filipe Zau (Angola)

 

“Se começarmos a respeitar as culturas com maior equidade, talvez se encontrem soluções”

 

No ISCTE, o angolano Filipe Zau defendeu o ensino das línguas nacionais e criticou o acordo ortográfico, num congresso que termina esta sexta-feira.

Nuno Pacheco
“Público” (online), 8 de Novembro de 2018

 

Os temas da cooperação e do bilinguismo ocuparam a primeira manhã do IV Congresso de Cooperação e Educação, que termina esta sexta-feira à tarde no ISCTE, em Lisboa. À sessão de abertura, seguiu-se uma mesa-redonda onde a cooperação na educação foi o tema dominante. Moderada pela investigadora Antónia Barreto, uma das organizadoras, nela expuseram os respectivos projectos e programas Gonçalo Teles Gomes (Instituto Camões), Maria Hermínia Cabral (Fundação Gulbenkian) e Ana Paula Laborinho (OEI, Organização dos Estados Ibero-Americanos em Portugal), evidenciando o que, planeado ou em curso, pode contribuir para uma melhoria da situação no terreno nos diversos países africanos e também em Timor-Leste, a despeito de “os recursos serem cada vez mais escassos”. Ficou no ar um rol de medidas (apoios à formação e a projectos específicos, bolsas, concursos, parcerias, educação em situações de emergência), faltando agora aferir os seus resultados.

Uma rigorosidade ética

A intervenção de fundo, porém, estava reservada para Filipe Zau, reitor da Universidade Independente de Angola. Tema? O bilinguismo. Abordando a “questão identitária, a questão educativa e a questão linguística na educação” lembrou que desde a fundação da CPLP, em 1996 (ele pertenceu ao secretariado) já os estatutos “abordavam a questão da cooperação linguística entre a língua portuguesa e outras línguas nacionais dos países africanos.”

E se, quer em África quer no Brasil, o português foi imposto à força por decisão do Marquês de Pombal, proibindo-se as línguas nacionais nas então colónias africanas, hoje elas estarão a retomar o seu papel. “As sociedades são cada vez mais multiculturais, mais plurilingues, e a diversidade está aí, não só para inglês ver”, disse Filipe Zau, citando Émile Durkheim para sublinhar que “há uma falsa ideia de educação universal”, mas há, isso sim, “uma rigorosidade ética de que professores e alunos não se devem abster.”

Que línguas ensinar?

Na linha do artigo que assinou no passado dia 1 no Jornal de Angola, intitulado “Línguas africanas no ensino e seu estatuto político”, Zau disse, citando Joseph Poth (especialista em didáctica de línguas junto do Instituto Nacional de Educação da República Centro Africana) que “as principais razões para a introdução das línguas africanas no ensino” decorrem, entre outras coisas, “do elevado índice de reprovações que se verificam na escola primária, por falta da necessária competência linguística nas línguas de escolarização de origem europeia.”

Por isso defende que “o paradigma da aprendizagem em línguas africanas não levanta problemas relacionados com o discurso pedagógico. Falha, no entanto, ou apresenta sérias dificuldades na sua operacionalização, se a educação não for reconhecida como sector de eleição. E também falha se houver falta de materiais didácticos adequados, falta de formação pedagógica apropriada e principalmente falta de vontade política, falta de apoio das populações e das diferentes elites existentes no país.”

Que línguas ensinar? As que forem inscritas na Constituição de cada país: “Não estarão todas, mas nenhuma deixará de ter estatuto. Umas serão nacionais, outras regionais, locais ou até transnacionais [faladas em mais de um país, como línguas de fronteira].” A Nigéria, disse, tem 400 línguas e escolheu 3 para línguas nacionais. E quem se deslocar? “Uma criança que está no Norte e depois vai para o Sul? Fala a língua do contexto onde está.”

AO trouxe mais problemas

Criticou, ainda, o acordo ortográfico. “Há coisas que ferem questões patrimoniais. Não há acordo possível se não houver negociação. A língua portuguesa não é só dos portugueses, nem só dos brasileiros, é também dos africanos. Se pensarmos isso, começamos a ter uma relação de equidade entre as culturas. Porque a nossa relação é de plano inclinado, de cima para baixo: podem ou não podem, é ou não é. E não é isso que ajuda, nem a alfabetização nem a difusão da língua portuguesa. E muito menos aquilo que é impossível fazer neste acordo: unir através da fonologia, uma vez que falamos todos [de formas] diferentes. Não uniu com o Brasil, desuniu, e parece que trouxemos mais problemas do que afinal tínhamos antes. Esta questão do bilinguismo também entra por esta porta: se começarmos a reconhecer estas diferenças e a respeitar as culturas com maior equidade, talvez se encontrem futuramente soluções, quer para a educação quer para muitos dos problemas que temos.”

 

 

[Artigo do jornal “Público”, 08.11.18 (versão “online”). Transcrição integral. Os “links” (a verde) e os destaques são meus. Imagem de topo: recorte da página do ISCTE no Facebook.]

“Línguas étnicas” [Filipe Zau, “Jornal de Angola”, 01.11.18]

 

Línguas africanas no ensino e seu estatuto político

Filipe Zau *
“Jornal de Angola”, 1 de Novembro de 2018

 

Nos dias de hoje, a realidade face à utilização ou não das línguas africanas no ensino é caracterizada pelos seguintes três aspectos: monolinguismo de origem europeia; bilinguismo de origem afro-europeia; monolinguismo de origem africana. As duas primeiras representam as situações existentes nos sistemas escolares africanos, sendo o monolinguismo africano uma excepção.

Joseph Poth, especialista em didáctica de línguas junto do Instituto Nacional de Educação da República Centro Africana, informa-nos que a mera prática pedagógica, permite concluir que “as frequentes referências aos factos psicológicos próprios da criança europeia escondem e deformam a personalidade profunda da criança africana”. Justifica esta sua afirmação no facto de a “(…) criança africana ser marcada, desde o início da sua escolaridade, por uma situação de conflito grave, resultante do facto da sua língua materna, na qual até então se exprimiu e se afirmou correr o risco de ser brutalmente rejeitada.” Acrescenta ainda o seguinte: “Na medida em que a língua materna, na qual até então se exprimiu e se afirmou, corre o risco de ser brutamente rejeitada. Esta língua, embora rica em valores profundos e em meios de expressão, passa a ter, aos olhos da criança, um valor social inferior ao da língua de importação, pelo simples facto de só esta última ser julgada digna de ser ensinada e estudada. O conflito linguístico degenera, facilmente, em conflito cultural porque o estudo exclusivo de uma língua supõe uma referência permanente a uma escala de valores extralinguísticos de ordem cultural e moral”.

O estatuto de “parente pobre” atribuído à sua língua materna leva a criança africana a considerar pejorativo, tudo o que se encontra ligado ao seu património cultural, nomeadamente, o seu próprio património linguístico. Quando uma língua, sob pressão de factores económicos, políticos, ou religiosos é imposta à população adulta de um país ou de uma determinada região, esse mesmo idioma “não se impõe automaticamente às crianças, cujas necessidades (de ordem diferente), podem ser perfeitamente satisfeitas pelo falar materno.”

Na opinião de Joseph Poth, no seu livro “Línguas Nacionais e Formação de Professores em África”, as principais razões para a introdução das línguas africanas no ensino decorrem, essencialmente: “do elevado índice de reprovações que se verificam na escola primária, por falta da necessária competência linguística nas línguas de escolarização de origem europeia; dos avanços alcançados pela linguística, no que se refere aos sistemas de funcionamento das línguas, o que, no plano teórico, acabou por ultrapassar dificuldades consideradas até bem pouco tempo insuperáveis; dos progressos alcançados pela psicologia, que realçou a importância primordial da língua materna no desenvolvimento psicomotor, afectivo, moral e cognitivo da criança; do imperativo de pedagogicamente organizar os programas do ensino e da formação de acordo com a realidade cultural, linguística e humana de África. Tal necessidade justifica, no plano pedagógico, a utilização das línguas africanas nos institutos de formação, mesmo nos casos em que estas línguas não tenham acesso oficial ao ensino primário.”

De realçar, desde logo, que a utilização de línguas africanas na formação, não deverá ser entendida como forma de substituir ou até mesmo excluir a língua oficial e de escolaridade, que vem sendo utilizada. Com efeito, mesmo nos países onde as línguas africanas têm algum estatuto nas instituições de ensino, a língua de difusão internacional permaneceu, geralmente, como um meio preponderante dos curricula.

Contudo, refere Jorge Morais Barbosa, em “A Língua Portuguesa no Mundo”, que só a partir de 1921 (através do Decreto nº 77, do Governador Provincial de Angola, Norton de Matos, publicado pelo Boletim Oficial de Angola, nº 5, 1ª série, de 9 de Dezembro), passava a ser obrigatório o ensino da língua portuguesa nas missões e deixava de ser permitido o ensino das línguas estrangeiras e das línguas africanas. Estas últimas, sob o protesto de poderem vir a prejudicar a ordem pública e a liberdade ou a segurança dos cidadãos portugueses e das próprias populações africanas: “As disposições (…) não impedem os trabalhos linguísticos ou quaisquer outras de investigações científicas, reservando-se porém ao governo o direito de proibir a sua circulação quando, mediante inquérito administrativo, se reconhecer que ela pode prejudicar a ordem pública e a liberdade ou a segurança dos ‘cidadãos’ e das populações indígenas” (artº 4).

Após a independência houve, de facto, vontade de valorizar o papel sócio-cultural das línguas africanas em Angola, passando a designá-las por “línguas nacionais”, sem que, até ao momento, a Constituição da República de Angola se tenha debruçado sobre a definição do estatuto político de cada uma delas: Quais as nacionais (mesmo que sejam transnacionais)? Quais as regionais? Quais as locais? Até que haja uma definição política sobre este assunto e sobre as implicações decorrentes de cada um dos estatutos linguísticos atribuídos, continuamos, tão somente, perante línguas étnicas.

  * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Filipe Zau, publicado no “Jornal de Angola” de 01.11.18. “Links” e destaques meus. Imagem de topo: recorte de página de “Club K“.]

“Uma casta que prefere a ilusão à realidade” [Nuno Pacheco, “Público”, 08.11.18]

A Língua Portuguesa a gostar dela própria

É melhor pôr o dedo em feridas e tentar curá-las do que deixá-las gangrenar. E isto também se aplica à língua.

Nuno Pacheco
8 de Novembro de 2018

 

Com a devida vénia à frase-sigla decalcada no título desta crónica (A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, meritório projecto de Tiago Pereira), há na Língua Portuguesa uma propensão para a autocontemplação ou mesmo, nos piores casos, para a indulgência. Não exactamente na língua, mas em muitos dos seus oficiais arautos ou pretensos defensores. Uma atitude que se compraz com mapas, números, de preferência números grandes, para provar avanços (onde? como?), vitórias (contra quê ou quem?), sucessos (de que valia?). Tudo isto ser pode arrumar, como aqui em tempos se escreveu, no pacote da propaganda.

Exemplo disso é o Novo Atlas da Língua Portuguesa, um panegírico às “grandes glórias” do português, bem ao gosto de uma casta que prefere a ilusão à realidade. Não por acaso, o livro (que já vai em segunda edição) tem chancela do Governo Português, da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, do Instituto Camões e do ISCTE-IUL. Ora é precisamente no ISCTE-IUL que se inicia esta quinta-feira (terminando no dia seguinte) um congresso que parte de um pressuposto bem mais realista. Em lugar de se embevecerem com os números (que tanto jeito dão ao contentismo político), põem-nos em causa; em vez de propaganda, sugerem um inquérito à realidade; e não têm medo de sugerir que há muita coisa que vai mal, até porque só assim se poderá agir para corrigir erros e preparar um melhor futuro.

Quer isto dizer que tal congresso vai contra o rumo seguido pelas passadas oficiais, a começar pelas do Instituto Camões? Não, até porque este instituto nele se envolveu, tal como o ISCTE, que o acolhe e promove. Mas que se tenha a coragem de dessacralizar a propaganda (“Ao contrário do que se diz, não há 280 milhões de falantes de português no mundo”, diz-se claramente do comunicado de imprensa do congresso) é pelo menos sinal de que alguma coisa pode mover-se num sentido útil e não pantanoso. Assim se continue.

Convém recordar que os encontros e congressos sobre a Língua Portuguesa (já para não falar em livros, de origem académica ou não) não são novidade. São bem mais, aliás, do que os actos concretos para preservar, ensinar e acompanhar a evolução natural da língua nas suas muitas variantes; e isso ressente-se nos números, preocupantes, dos falantes de português em África, em percentagens bem longe dos mapas eufóricos do Novo Atlas.

Para citar apenas um, na conferência internacional A Língua Portuguesa: Presente e Futuro, organizada em 2004 pela Fundação Calouste Gulbenkian, já se apontavam vias e sugestões que, na maioria dos casos, não passaram do papel. E já nessa altura se falava numa “política de emergência quanto ao ensino da língua.” Disse-o Vasco Graça Moura, que na sua comunicação propôs que fosse criado “um estatuto do professor de português, com condições privilegiadas de acesso, remuneração e progressão na carreira, na contrapartida de formações muito exigentes”, além de outros pressupostos para garantir o bom desempenho e a qualidade da sua prestação, entre os quais “uma responsabilização muito severa quanto aos resultados.” Dizia ele que, mesmo que tal medida fosse adoptada nesse momento, “o problema levaria trinta anos a resolver (…) e trinta anos, em muito que isso nos pese, já é mais uma ‘geração perdida’.”

Onde vão esses trinta anos? Talvez em sessenta, ou mais. É muito curioso que as organizadoras do actual congresso do ISCTE, com trabalho no terreno, em África ou em Timor-Leste, dêem como bom exemplo (e é, sem dúvida) o caso de uma experiência no sul da Guiné-Bissau onde viram “crianças a falar e a aprender em português e com um bom sistema de aprendizagem.” Como? “Com professores que ganham três vezes mais do que os outros, com subsídio de instalação, etc., e com uma formação à parte, com reuniões todos os meses e novos métodos pedagógicos.” Vasco Graça Moura só poderia concordar.

Não se sabe o que sairá do IV Congresso de Cooperação e Educação, que reúne no ICSTE especialistas de vários países. Mas seria bom que saísse a consciência clara dos problemas existentes e das medidas práticas e não adiáveis que eles impõem. E isso é que é a língua portuguesa a gostar dela própria, sem Novos Atlas a paralisar-lhe os passos. Porque é melhor pôr o dedo em feridas e tentar curá-las do que deixá-las gangrenar. E isto também se aplica à língua, que precisa mais de acções do que de propaganda.

[Transcrição integral de crónica do jornal “Público”, da autoria de Nuno Pacheco, publicada em 08.11.18. “Links” (a verde) e destaques meus. Imagem de topo de: INCM.]