“A língua no meio do caminho”
Esse é o título de um colóquio que a Rede de Professores de Literatura Brasileira em Portugal realizará nesta semana, na Universidade do Porto.
No meio do caminho, digamos entre o Romantismo e o nosso Modernismo, a língua foi de fato um problema central. Qualquer pessoa familiarizada com a história da literatura brasileira por certo conhece a obra de Alencar e a crítica feroz que lhe foi feita justamente quanto ao aspecto linguístico. Da mesma forma, quem estudou o nosso Parnasianismo sabe que a norma portuguesa imperou, num esforço sintático e prosódico, como ideal de cultura e distinção. E todos por certo conhecem os ataques modernistas aos que, no dizer de Bandeira, macaqueavam a sintaxe lusíada, bem como as soluções ensaiadas por Mário de Andrade.
Pelo que vi do programa, esses pontos serão debatidos. E, pelo que imagino de alguns outros títulos de comunicações, também será objeto de debates a questão da língua hoje, que me parece mais difícil de abordar.
Quanto ao presente, creio que o título do colóquio é bem apropriado, do ponto de vista brasileiro. A língua para nós é um problema: é a pedra no meio do caminho. Em vários sentidos: do ponto de vista português, vivemos tropeçando nela. Já do ponto de vista da linguagem culta brasileira, o “meio do caminho” surge como uma espécie de ideal: nem tão brasileira (pois ao menos na escrita e nas falas muito formais temos até hoje o prurido dos pronomes, e o cuidado de rever regências e concordâncias), nem tão lusitana a ponto de parecer esnobe ou friamente artificial.
Mas se do lado brasileiro a questão da língua é uma pedra no caminho, do lado português o problema não se coloca da mesma maneira. Aqui, no confronto, a situação parece mais confortável. E talvez pudesse exigir referência a outros versos. No caso, dois versos especulares, de T. S. Eliot: “in my beginning is my end” / “in my end is my beginning”.
Quero dizer: num caso, trata-se de promover, conservar ou modular uma continuidade; no outro, de encarar (para enfatizar ou para evitar) uma ruptura. Para este segundo caso, o brasileiro, portanto, é que se aplica, em todos os sentidos, a metáfora do meio do caminho.
Fiquei agora, enquanto tomava um pouco de sol nesta manhã fria de Coimbra (este lugar tão simbólico para o assunto), divagando sobre esse tópico. E, num dado momento, lembrei-me de uma coleção que foi publicada pela Editora da Unicamp e que sempre me causou um certo mal-estar.
Uma coleção dirigida por competentes linguistas, sem dúvida. E por isso mesmo devia ser publicada por uma editora universitária, como o foi enquanto lá estive.
Trata-se da coleção “Gramática do português culto falado no Brasil”.
O mal-estar, no caso, não vinha apenas da definição do que era o falante culto. Nem das construções apontadas como cultas, que não me pareciam razoáveis – talvez porque as visse ali escritas, já que faladas não me eram estranhas, pelo contrário. Vinha principalmente do fato de que aqueles volumes sistematizavam a nossa fala – mesmo a fala dos professores de português ou de literatura, além da fala de tantas outras pessoas de nível superior que têm na linguagem falada um lugar de exercício profissional. E o que essa fala culta patenteava a todo momento era o abismo entre ela e a linguagem escrita praticada por essas mesmas pessoas.
Na época, fiquei imaginando o que seria o equivalente daquele livro, no que toca à escrita: uma Gramática do português do Brasil (sem a especificação “falado”, nem a determinação “escrito”). Porque esse é o nosso grande problema: o distanciamento cada vez maior entre as normas – e a consequente falta de uma norma geral, que recolha, ordene e sancione (sim, isso também é importante) a prática.
Sempre me lembrava, quando isso me ocorria, de um artigo em que Mário de Andrade tentava resolver o impasse, ao propor o português conservador como língua de comunicação acima do dialetal – e quase como língua morta (como o latim renascentista) ou língua franca (como o inglês atualmente). Sua solução deixava separados os domínios da criação artística e da linguagem formal, científica ou meramente informativa. O que hoje parece ser prática difundida, mas não convincente, se pensamos em uma norma efetiva e geral para o país.
A questão central, portanto, até onde vejo, permanece irresolvida: qual é a língua culta brasileira? Ou não há língua culta na modalidade brasileira? Ou há apenas a que ainda – para exagerar como Bandeira – macaqueia a norma portuguesa?
Foi o que pensei, enquanto escrevia e observava que na minha própria escrita não há muito da minha fala. E por fim me perguntei, sem ter resposta, se a “língua culta brasileira” seria apenas a que, com algum cuidado e variável dificuldade, busca de fato um delicado e incerto “meio do caminho”.
[“Links”, destaques e sublinhados meus.]