Manifesto pelo “Vós”
Patrick Rocha
Guardador de tralha e membro de Ululatus Edições
“Público” (online), 9 de Novembro de 2018O uso de vós é considerado, por muitos linguistas inclusive, provinciano ou arcaico, por isso temos de falar todos à moda da capital, como se diz, e usar vocês em vez de vós, para não parecermos provincianos ou arcaicos.
Vós? Mas de que século/ região veio este moço?
O meu português é o português do meu avô, 24 horas por dia, e ele dirige-se à segunda pessoa plural do discurso com o pronome “vós”. Ele naturalmente conjuga todos os verbos na segunda pessoa do plural, isto é, vós ides, vós vindes, vós fostes, vós andastes; ele fala como os galegos que dizem vós (ou vosoutros), como os castelhanos que dizem vosotros, como os catalães que dizem vosaltres, como os franceses que dizem vous, como os italianos que dizem voi, ou como os romenos que também dizem voi. Isto para não mencionar os idiomas germânicos, eslavos ou o basco.
Só o português, entretanto, e ninguém sabe bem porquê, é que usa o pronome vocês (terceira pessoa plural) quando, na verdade, se dirige à segunda pessoa plural, e devia chamá-la vós. Porque o vós é só o plural semântico do tu. Quando há dois “tu”, para mim sois “vós”. Como no jogo da sueca: nós/ vós. Não sois “vocês” porque, quando não há dois “tu”, tu não és você. Não te trato por você, a não ser que seja você uma pessoa desconhecida ou a situação bastante formal, o que acontece nas melhores famílias. Isto em Portugal, claro. Estou a falar do português de Portugal, que ainda existe e resiste, todavia.
Tal, pesquisando esse fenómeno mais a fundo, querendo mesmo perceber o porquê de o português de Portugal ter expatriado o vós da comunicação do nosso quotidiano, dificilmente me deparei com uma explicação que não remeta para a questão da evolução da língua, o tal sistema pronominal do português, claro. Lê-se também que o uso de vós é considerado, por muitos linguistas inclusive, provinciano ou arcaico, por isso temos de falar todos à moda da capital, como se diz, e usar vocês em vez de vós, para não parecermos provincianos ou arcaicos (acontece exactamente a mesma coisa com o acordo ortográfico, só que o capital aqui está no Brasil).
Sem embargo, existem explicações no contexto da religião, sendo que nos dirigimos a deus na segunda pessoa plural (“Pai nosso, que estais no céu”), ou o padre a nós (“Rezai a deus, nosso senhor”) ou explicações no contexto da realeza, porque nos dirigíamos ao rei ou à rainha também na segunda pessoa plural (vossa majestade, vós estais muito bonito/a). Não encontrei uma explicação realmente linguística. Evolução: está fora de uso…
Mas não está fora de uso, garanto-vos. Está, de facto, em uso. Certas ilhas neste país, e não falo só das nortenhas, mantêm o uso de vós, quando vós sois dois “tu” e não dois “você”. A Estrada Nacional 2 é a minha testemunha. É uma outra forma, se não a forma correcta, de nos dirigirmos a duas ou mais pessoas num contexto de (tu, de nos tratarmos por tu, de ficarmos suave na nave na onda do tu, tu e eu, nós e vós, e podíamos deixar o/s você/s (existem filhos que tratam pais por você!) de vez e para sempre. Tanta formalidade inútil para quê? É que nem nos pronomes pessoais rectos o(s) você(s) aparece(m). Perceberam? Não? Mas percebestes.
[Transcrição integral de Manifesto pelo “Vós” , da autoria de Patrick Rocha. Público” (online), 9 de Novembro de 2018. Destaques meus. Imagem de topo: recorte de “interface” do “site” Conjuga-me.]