«O acordo ortográfico é uma merda» [Manuel Monteiro, entrevista]

Pois é… pois é…

O AO90 é uma merda, sem dúvida, como diz muitíssimo bem Manuel Monteiro. E no caso, raios, nem se pode utilizar a lapidar expressão idiomática habitual, pois que “bela merda” seria tremendo desperdício, o adjectivo funcionaria ali a contrario, ou seja, iria servir como penacho para ostentar a matéria substantiva em vez de ser usado como capacho para raspar a substância digerida.

Enfim, lá estou eu a meter-me em trapalhadas de merda usando uns trocadilhos a condizer, maldito vício, isto ele não pode a gente deixar-se contaminar pelos eflúvios pútridos dos esgotos, os vapores nauseabundos da estrumeira, em tendo por dever de ofício ou por obrigação mourejar no meio da porcaria. O que é infelizmente o meu caso, longa história, visto que a luta contra o “acordo ortográfico” é um trabalho de há pelo menos uma década em que sempre estive literalmente enterrado em bosta até ao pescoço. Ora, isso implica ter de lidar com merdosos — nem todos eles necessariamente acordistas –, levar com cagões — nem todos eles realmente anti-acordistas – e aguentar argumentos de caca — nem todos eles verdadeiros argumentos mas todos eles verdadeiramente de caca.

É assim o “mundo” do anti-acordismo, um meio agreste que o comum dos mortais evita por causa do fedor e para não ficar com a farpela toda cagada, os sapatos a tresandar mesmo depois de umas mangueiradas e o corpo a pedir três banhos de imersão seguidos para remover a pestilência.

Estas intestinais considerações justificam-se por si mesmas, tendo em vista o objecto a considerar, salvo seja. Não me recordo já de quem escreveu (Morris?) algo como “a nossa espécie, ao contrário de todas as outras, tenta desesperadamente esconder tudo aquilo que denuncie a sua condição de simples animal, um vulgar mamífero”. Outro autor (idem, aspas, não me lembro), um pouco mais “terra-a-terra”, dizia que “passamos a vida a esconder a merda, a fugir da merda, a sublimar a merda, na tentativa desesperada (e inútil) de transformar a vida em algo sublime, elevado e perene”.

De quejandas perfumadas palavras ressalta a essência do motivo pelo qual me toca particularmente que (ou quando) alguém se atreve a usar semelhante conjugação de cinco letrinhas apenas, cagando positivamente nos pruridos (de) burgueses mai-lo seu podre moralismo. “O AO90 é uma merda” vale, como escatológica, radical e definitiva sentença, por todas as “flagrantes contradições”, “erros inadmissíveis” e demais formulações dúbias e fraquinhos considerandos que amiúde debitam uns merdas.

Tiro mentalmente (além de espiritualmente e também literalmente, nem de propósito) o chapéu, por conseguinte e porque o assunto me diz algo (ui, se diz!), ao autor do certeiro diagnóstico, cumprimentando-o em simultâneo pelos antecedentes do dito. Ainda há poucos dias usara ele noutra entrevista, porque estava a falar para o microfone numa estação de rádio nacional, o termo “absurdo” para designar a ortográfica defecação; a substituição do adjectivo real por este outro, mais “técnico” (digamos assim), não terá ocorrido por pudor, creio. O gajo não me parece ser de se pôr com merdas dessas, quero dizer.

AO SERVIÇO DA LÍNGUA PORTUGUESA // PORTUGAL

«Os políticos, os jornalistas e os habitantes do espaço público escrevem cada vez pior. Claro está que esta generalização é injusta para alguns (poucos, em rigor), mas é uma tendência que só um cego mental não vê. Vivemos na era dos tecnocratas, da velocidade, há pouco espaço para fazer amor com as palavras.»
Manuel Monteiro, Portugal

 

A revisão de textos é, por si só, tarefa de abissal responsabilidade — adentrar universos alheios de cariz literário, técnico ou outro, com o propósito de os aprimorar, corrigindo-os, adequando-os e harmonizando-os, destarte compondo, sagaz e subtilmente, as versões que viremos a conhecer. Tem por principal requisito uma rara combinação entre sensibilidade e erudição, exigindo aptidão e apetência para a estética e a eufonia.

Manuel Monteiro é magistral na sua execução. Ademais, é formador profissional de revisores, jornalista e autor (na área da ficção e da não-ficção), tendo publicado, recentemente, pela editora Objectiva, Por Amor à Língua, e, antes disso, Dicionário de Erros Frequentes da Língua. É, creio, um purista sensato e um laborioso agente revitalizador da Língua Portuguesa.

Enquanto crescias, entusiasmavam-te especialmente as palavras? Como? Quais?
Sempre vivi a literatura como uma segunda pele. Desde criança. Preciso de mergulhar nas palavras dos outros, de entrar noutras cabeças. Os livros conseguem, quando bons, ir mais fundo do que a maior parte das conversas. Não as substituem, evidentemente. Os livros também têm muitas camadas, como as pessoas. Reler é importantíssimo. A releitura de O Jogo das Contas de Vidro empurra-me sempre para novas interpretações. Delicio-me com a descoberta de palavras. É um exercício que nunca perdeu um átomo de deslumbramento. Gosto mesmo muito de dicionários, mormente dos mais antigos, porque têm, grosso modo, mais qualidade. Gosto da sinonímia da nossa língua. Quais? Tenho algumas dilectas no quinto capítulo.

Em que ocasiões te vês imerso em êxtase literário? (E que sentes, ao emergir?)
São momentos raros. Mas acontecem. E são de uma felicidade imensa. Poderia citar e citar… O Canto de Mim Mesmo está cheio disso. Para mim, claro está.

O cosmos cabe nas palavras que inventámos?
Coube no Folhas de Erva.

E o silêncio?
Lobo Antunes disse que: «Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é.» Ele diz muitos, muitos disparates e coisas que não sente (como não se lembrar de nada do que escreveu), mas também acerta muitas vezes.

É, para ti, fundamental divulgar a riqueza e a diversidade da nossa língua. Que sugestões podes dar para que sejamos mais nessa missão?
Ler Camilo, ler Castilho, ler dicionários.

Como lidas com a frustração ante a trivialização do uso indevido da língua nesta era tecnológica, propensa à velocidade e, consequentemente, à aniquilação da beleza?
Lendo Theodore John Kaczynski.

Sem uma comunicação eficaz, mina-se a autonomia, o respeito e a solidariedade; a comunidade fractura-se. Consideras satisfatório o serviço público, em Portugal, relativo ao acesso e ao aperfeiçoamento da língua portuguesa?
Os políticos, os jornalistas e os habitantes do espaço público escrevem cada vez pior. Claro está que esta generalização é injusta para alguns (poucos, em rigor), mas é uma tendência que só um cego mental não vê. Vivemos na era dos tecnocratas, da velocidade, há pouco espaço para fazer amor com as palavras.

Download, feedback, standby, briefing, corporate, cool, teaser, part-time, shopping, peeling, storyboard. A desvalorização da própria língua, e a adopção crescente (e vaidosa!) de uma estrangeira, são reflexo de uma acanhada identidade?
Cito do meu próprio livro: «À imitação totalmente inútil, não se chama “cosmopolitismo”, mas “saloiice”.»

Por que não se investe (mais) na preservação e revitalização da língua portuguesa, se é esse o idioma da nossa memória afectiva e um dos factores que nos robustecem o sentimento de pertença?
Não é preciso muito. Comecem por empregar palavras portuguesas, muitas delas correntias, para combater o portinglês. Trata-se de uma moda: dá ares de modernidade não conhecer o nosso idioma, não saber compor uma frase e despejar umas palavras inglesas que mostrarão que se tem mundo.

A tua crónica Admirável Língua Nova, no jornal Público, é, também, uma exaustiva e premente demonstração da incoerência do Novo Acordo Ortográfico de 1990. Que balanço fazes deste teu trabalho? (Acreditas num recuo, relativamente à imposição da nova grafia?)
Foram anos de leitura e reflexão. A conclusão é simples: o Acordo é uma merda, um embuste, não tem regras claras quanto aos hífenes nas locuções e quanto à «pronúncia culta». Não há um objectivo que tenha sido cumprido. Não há um argumento que resista aos factos da língua. São setenta páginas no meu livro que o demonstram. Se não houver recuo, os leitores que não comprem os livros acordizados, os autores que não escrevam segundo o dito, quem se ocupa da comunicação lato sensu que não o use. Quanto ao mais, quem o usa… estatela-se sempre. Diz-me uma pessoa que use o Acordo na totalidade. UMA! Seguem partes do Acordo que misturam com o anterior, que misturam ainda com outro que não existe.
[…]

Os livros são um dos veículos da memória que, por sua vez, tem implicações na evolução da humanidade. Motiva-te essa perpetuação, quando escreves? Ou preferes celebrar instantes?
A escrita é para muitos, creio, uma tentativa de continuar depois da morte.

Nesse «lugar» em que escreves, és livre?  
Sou. Até hoje, pelo menos.

A estética é uma das tuas directrizes?
Mal da minha escrita se não fosse.

A capacidade de comoção perante a arte, nomeadamente, a literatura, é proporcional à noção da interligação de todos os elementos que compõem o universo?
É proporcional ao estro de quem escreve.

[Transcrição (quase) integral de entrevista de Manuel Monteiro ao “blog” com o título «O que fizeste hoje para mudar o mundo», publicação de 09.11.18. “Link” e destaques meus.Imagem de topo: recorte de página do dicionário “online” PRIBERAM com a “entrada” respeitante a “merda”.]

Nota: agradecimentos à autora do “blog” por ter acedido ao meu pedido para que retirasse da entrevista uma referência ao Apartado 53; foi um lapso do entrevistado, que misturava o endereço deste modesto porém respeitável “blog” com os de duas páginas tóxicas do Fakebook.

Updated: 26/09/2022 — 16:33