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«Political language — and with variations this is true of all political parties, from Conservatives to Anarchists — is designed to make lies sound truthful and murder respectable, and to give an appearance of solidity to pure wind.»» [George Orwell: ‘Politics and the English Language’, 1946]
«The purpose of Newspeak was not only to provide a medium of expression for the world-view and mental habits proper to the devotees of Ingsoc, but to make all other modes of thought impossible [George Orwell: ‘Nineteen Eighty-Four — Appendix: The Principles of Newspeak’, 1948]
«Don’t you see that the whole aim of Newspeak is to narrow the range of thought? In the end we shall make thought-crime literally impossible, because there will be no words in which to express it.» [ George Orwell, ‘1984’ ]

Opinião

“Camarados”

Pedro Filipe Soares

“Público”, 20 de Novembro de 2018

A linguagem inclusiva é mais um passo numa luta em várias frentes com um mesmo objetivo: vencer a agenda patriarcal.

 

A utilização da expressão “camaradas e camarados” durante a recente Convenção do Bloco de Esquerda mexeu no vespeiro do politicamente correto. A prova disso foi a inesperada atenção nacional que a frase mereceu.

Ter realçado essa parte específica da minha intervenção evidencia o que tira o CDS do sério. Eu tinha começado essa alocução por realçar que CDS e PSD decidiram apoiar o conservador alemão Manfred Weber como candidato à presidência da Comissão Europeia – a mesma pessoa que queria forçar a aplicação de sanções a Portugal no rescaldo das eleições legislativas de 2015, que tiraram a direita do governo. Tinha, ainda, acusado Nuno Melo de alta traição por se aliar a esses carrascos do povo português. Sobre isso, nada. O que o tirou do sério foi eu ser um aparente kamikaze da gramática. Diz muitíssimo sobre Nuno Melo e as suas prioridades políticas.

Um outro exemplo é de um militante contra a linguagem inclusiva, o humorista Ricardo Araújo Pereira (RAP), que decidiu abrir um novo capítulo neste dossier, desta feita no radiofónico Governo Sombra. O epíteto “ridículo” foi repetido pela enésima vez. A argumentação está longe da imaginação que caracteriza o humorista, mas mantém a coerência neste seu ideário.

Que a linguagem é política, ninguém duvida. RAP, como fervoroso adepto de futebol, saberá que o Estado Novo trocou o “vermelho” pelo “encarnado” para retirar quaisquer conotações de esquerda ao apoio ao Sport Lisboa e Benfica. Se assim foi no futebol, é absurdo achar que essa regra prevê uma exceção nas relações sociais.

O modelo patriarcal e machista de sociedade modela os idiomas? Não é a única causa, mas tem relevância. Tomemos França como exemplo. As fundações do absolutismo francês passaram pela estruturação e a normalização da língua francesa. Curiosamente, basta ler o que pensava um dos grandes arautos desse processo e perceber as suas intenções. Dominique Bouhours sustentava que, na gramática, “quando os dois géneros se encontram, o mais nobre deve prevalecer”, sendo obviamente da opinião que o género masculino era o mais nobre. Estamos conversados sobre a fraude que é a ideia de um suposto processo histórico neutro. Se tudo é político, por que é que algo tão importante como a linguagem deixaria de o ser? A língua tem história e ideologia.

A história portuguesa não é tão linear nesta matéria, não havendo um momento específico com a escolha deliberada de uma orientação masculina do idioma. Mas, há cinco séculos, já o primeiro gramático português, o aveirense Fernão de Oliveira, ironizava com a dominação do género masculino escrevendo que “marido e mulher ambos são bons homens”. E, até recentemente, Mulher significava a fêmea da espécie humana, enquanto Homem dava significado a cada um dos representantes da espécie humana.

A utilização do senso comum como a capa do politicamente correto, que permite as “piadas fáceis” ou dá cobertura a generalizações opressoras, é apenas mais uma faceta deste conservadorismo. Daí, cataloga a linguagem inclusiva de subversão gramatical e apela ao imobilismo social – regra geral, preferem chamar-lhe “tradição” – contra a evolução da língua. Ora, a tentativa de querer transformar a língua em património material inalterável ou imutável é uma comóidia sobre qualquer orthographia official.

O debate sobre a linguagem inclusiva não é sobre meras discordâncias linguísticas, esconde questões mais profundas. A linguagem inclusiva não é um fim em si mesmo, garantindo todas as inclusões. É mais um passo numa luta em várias frentes, mas com um mesmo objetivo: vencer a agenda patriarcal.

Contudo, o catastrofismo linguístico proclamado com a minha utilização de “camarados” só mostra quão desinformado pode ser o debate público. A reviravolta final, que quase parece inspirada num filme de Shyamalan, é que foi um erro prontamente corrigido na frase seguinte. Mas, há males que vêm por bem, dado que serviu, uma vez mais, para desmascarar o fanatismo da campanha contra a linguagem inclusiva.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

[Transcrição integral e exactamente conforme o original (ou seja, sem os “P” e os “C” que o jovem autor considera extremamente “reaccionários”) de “Camarados” , textículo publicado na secção de Opinião do jornal “Público” em 20.11.18. Inseri destaques, sublinhados e (alguns) “links”.]

Nota 1: excepcionalmente, a fim de manter na íntegra a abjecção do original estampado no “Público” (onde, pelos vistos, cada vez mais se aceita publicar qualquer merda) não utilizei desta vez a habitual ferramenta de correcção automática de grafias estropiadas pelo AO90.

Nota 2: o paleio de chacha do dito jovem está cá a moer-me a paciência, devo confessar, mas infelizmente — ordens do médico — tenho de me abster de comentários sobre parvoíces em geral e não posso de todo dar troco às de putos reguilas, ui, que perigo, avarias dessas dão-me cabo da tubagem.

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