“Uma casta que prefere a ilusão à realidade” [Nuno Pacheco, “Público”, 08.11.18]

A Língua Portuguesa a gostar dela própria

É melhor pôr o dedo em feridas e tentar curá-las do que deixá-las gangrenar. E isto também se aplica à língua.

Nuno Pacheco
8 de Novembro de 2018

 

Com a devida vénia à frase-sigla decalcada no título desta crónica (A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, meritório projecto de Tiago Pereira), há na Língua Portuguesa uma propensão para a autocontemplação ou mesmo, nos piores casos, para a indulgência. Não exactamente na língua, mas em muitos dos seus oficiais arautos ou pretensos defensores. Uma atitude que se compraz com mapas, números, de preferência números grandes, para provar avanços (onde? como?), vitórias (contra quê ou quem?), sucessos (de que valia?). Tudo isto ser pode arrumar, como aqui em tempos se escreveu, no pacote da propaganda.

Exemplo disso é o Novo Atlas da Língua Portuguesa, um panegírico às “grandes glórias” do português, bem ao gosto de uma casta que prefere a ilusão à realidade. Não por acaso, o livro (que já vai em segunda edição) tem chancela do Governo Português, da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, do Instituto Camões e do ISCTE-IUL. Ora é precisamente no ISCTE-IUL que se inicia esta quinta-feira (terminando no dia seguinte) um congresso que parte de um pressuposto bem mais realista. Em lugar de se embevecerem com os números (que tanto jeito dão ao contentismo político), põem-nos em causa; em vez de propaganda, sugerem um inquérito à realidade; e não têm medo de sugerir que há muita coisa que vai mal, até porque só assim se poderá agir para corrigir erros e preparar um melhor futuro.

Quer isto dizer que tal congresso vai contra o rumo seguido pelas passadas oficiais, a começar pelas do Instituto Camões? Não, até porque este instituto nele se envolveu, tal como o ISCTE, que o acolhe e promove. Mas que se tenha a coragem de dessacralizar a propaganda (“Ao contrário do que se diz, não há 280 milhões de falantes de português no mundo”, diz-se claramente do comunicado de imprensa do congresso) é pelo menos sinal de que alguma coisa pode mover-se num sentido útil e não pantanoso. Assim se continue.

Convém recordar que os encontros e congressos sobre a Língua Portuguesa (já para não falar em livros, de origem académica ou não) não são novidade. São bem mais, aliás, do que os actos concretos para preservar, ensinar e acompanhar a evolução natural da língua nas suas muitas variantes; e isso ressente-se nos números, preocupantes, dos falantes de português em África, em percentagens bem longe dos mapas eufóricos do Novo Atlas.

Para citar apenas um, na conferência internacional A Língua Portuguesa: Presente e Futuro, organizada em 2004 pela Fundação Calouste Gulbenkian, já se apontavam vias e sugestões que, na maioria dos casos, não passaram do papel. E já nessa altura se falava numa “política de emergência quanto ao ensino da língua.” Disse-o Vasco Graça Moura, que na sua comunicação propôs que fosse criado “um estatuto do professor de português, com condições privilegiadas de acesso, remuneração e progressão na carreira, na contrapartida de formações muito exigentes”, além de outros pressupostos para garantir o bom desempenho e a qualidade da sua prestação, entre os quais “uma responsabilização muito severa quanto aos resultados.” Dizia ele que, mesmo que tal medida fosse adoptada nesse momento, “o problema levaria trinta anos a resolver (…) e trinta anos, em muito que isso nos pese, já é mais uma ‘geração perdida’.”

Onde vão esses trinta anos? Talvez em sessenta, ou mais. É muito curioso que as organizadoras do actual congresso do ISCTE, com trabalho no terreno, em África ou em Timor-Leste, dêem como bom exemplo (e é, sem dúvida) o caso de uma experiência no sul da Guiné-Bissau onde viram “crianças a falar e a aprender em português e com um bom sistema de aprendizagem.” Como? “Com professores que ganham três vezes mais do que os outros, com subsídio de instalação, etc., e com uma formação à parte, com reuniões todos os meses e novos métodos pedagógicos.” Vasco Graça Moura só poderia concordar.

Não se sabe o que sairá do IV Congresso de Cooperação e Educação, que reúne no ICSTE especialistas de vários países. Mas seria bom que saísse a consciência clara dos problemas existentes e das medidas práticas e não adiáveis que eles impõem. E isso é que é a língua portuguesa a gostar dela própria, sem Novos Atlas a paralisar-lhe os passos. Porque é melhor pôr o dedo em feridas e tentar curá-las do que deixá-las gangrenar. E isto também se aplica à língua, que precisa mais de acções do que de propaganda.

[Transcrição integral de crónica do jornal “Público”, da autoria de Nuno Pacheco, publicada em 08.11.18. “Links” (a verde) e destaques meus. Imagem de topo de: INCM.]