Dia: 1 de Dezembro, 2018

A mula da “cupulativa”

Deste artigo há um “facto político” a reter: o semanário “Expresso”, que aferrolha na versão online todos os  seus conteúdos — quem quiser ler qualquer daquelas “preciosidades” tem de pagar — deixou aberto este artigo, sem qualquer ferrolho virtual, totalmente grátis para quem o quiser ler.

Este raro fenómeno de extraordinária generosidade terá porventura, por exclusão de partes, uma única explicação: o “Expresso”, enquanto órgão central da seita DDT (em especial dos ramos maçónico, Bilderberg e Opus Dei), abre os cordões à bolsa em se tratando — exclusivamente — de pura propaganda do “ideário” lojista (na acepção do avental decorativo, não do utilitário).

Traduzindo em miúdos esta hermética linguagem, que não por mero acaso adoram os próprios aventaleiros Donos Disto Tudo: este artigo, abrilhantado e servido pelo mais promissor irmãozinho da confraria, é grátis apenas porque serve de panfleto promocional.

Expresso | Augusto Santos Silva: “Temos de olhar para Angola como o nosso próximo Brasil”

Quatro dias depois de João Lourenço deixar Lisboa, o ministro dos Negócios Estrangeiros responde aos cépticos: “Quem não compreender o que está a acontecer em Angola não está a compreender nada”. Numa conferência com banqueiros, advogados, empresários e diplomatas, Santos Silva criticou o BCE e avisou a Europa: “Desvalorizar a relação com África é um erro crasso”.

Augusto Santos Silva não deixou arrefecer a visita de Estado que o Presidente de Angola fez a Portugal e que Marcelo Rebelo de Sousa retribuirá em Março quando se deslocar a Luanda. Quarta-feira, numa conferência em Lisboa, o ministro dos Negócios Estrangeiros insistiu (para céptico ouvir?) que o apelo deixado por João Lourenço para que os portugueses se virem “em força” para Angola é a sério e que “quem não compreender o que está a acontecer em Angola não está a compreender nada”.

Temos de olhar para Angola como o nosso próximo Brasil“, arriscou o ministro , que foi o convidado de mais uma conferência organizada pela Abreu Advogados, desta vez sobre o tema “O papel de África na política externa portuguesa”. Muito crítico da forma como a Europa, e em particular o Banco Central Europeu, têm encarado a relação com o continente africano – “a Europa não se pode fechar sobre si própria” -, Santos Silva explicou como África tem um papel “absolutamente central” não só na nossa política externa como na nossa política europeia.

“Quando nos perguntam se Portugal vale na Europa pelo que vale fora ou se vale fora pelo que vale na Europa, eu uso a cupulativa“, afirmou. Ou seja, Portugal vale pela soma e pela relação privilegiada que mantém com africanos e europeus. Prova disso, anunciou o ministro, é que “uma das prioridades da presidência da União Europeia que Portugal assumirá em 2021” vai ser, precisamente, “a relação Europa-África”.

Convicto de que “grande parte dos problemas e das potencialidades da Europa só se resolvem em parceria com África”, Augusto Santos Silva exemplificou com as questões demográficas, a segurança, o crescimento, as necessidades de comércio, e os movimentos migratórios, para concluir que no actual contexto internacional, “desvalorizar a relação com África é um erro crasso”. No caso português, o ministro assumiu que “as duas Áfricas, Magrebe e Subsariana, são igualmente próximas”. Mas deu destaque a Moçambique e a Angola, que na sua opinião “vai ser o navio-almirante da língua portuguesa no mundo“.

Muito crítico da forma como o BCE obrigou à desalavancagem do investimento financeiro europeu em África – “um erro enorme” – Santos Silva viu nessa decisão “um preconceito” e avisou que “é um erro querer usar a mesma forma de sapato para pés diferentes”. É preciso “aumentar o orçamento comunitário”, fazer “mais parcerias para investimento“, defendeu o chefe da diplomacia portuguesa, que insistiu na oportunidade que representam para os portugueses as possíveis parcerias com Angola na educação, saúde, agricultura e investimento.

Marques Mendes, presidente do conselho estratégico da Abreu Advogados, também falou de Angola como “um mundo de oportunidades”, quem sabe até para “novos clientes”. Na plateia, a ouvir Augusto Santos Silva estiveram, entre outros, os CEO e Chairman do BCP, Miguel Maia e Nuno Amado, o CEO do Novo Banco, António Ramalho, o vice da Caixa Geral de Depósitos, José João Guilherme, Eduardo Catroga da EDP, Bruno Bobone da Câmara de Comércio luso-angolana, os presidentes da Siemens e dos CTT, responsáveis do grupo Sana, deputados, e os embaixadores de Angola, Moçambique e Bélgica.

 

[Source: Expresso | Augusto Santos Silva: “Temos de olhar para Angola como o nosso próximo Brasil” . Destaques meus. Imagem de topo de: Masoneria Libertaria.]

«Sem acção, isto é, atuado» [F. M. Valada, “Público”, 01.12.18]

Sem acção, isto é, atuado

É assim que o Estado, de facto, aplica o AO90. O resto é arena atirada para os nossos óculos.

1 de Dezembro de 2018

“Se tutoyer, os franceses têm o vous / E eu tenho-te a ti”
GNR

“Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”
Tomasi di Lampedusa

 

1. Efectivamente, atuado. Há dias, folheava uma obra de Gonçalves Viana (Apostilas aos Dicionários Portugueses, de 1906) e encontrei este atuado, originalmente indicado por Leite de Vasconcelos, no final de um artigo sobre dialectos alentejanos, publicado na Revista Lusitana (vol. II, p. 43, 1890-2). Aquilo que a um incauto poderia parecer uma pouco verosímil adopção muito ‘avant la lettre’ das propostas do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) ou, hipótese mais plausível, uma gralha na redacção de actuado, afinal mais não era do que o significante de “sem acção” na “linguagem popular de Serpa”. Aliás, Leite de Vasconcelos explica com o exemplo “as sanguessugas ficaram atuadas” que as sanguessugas “não tiraram sangue” (acrescentando que atuado terá raiz attenuatum < attenuare < tenuis). Felizmente, naquele tempo, Gonçalves Viana e Leite de Vasconcelos deram o mote para o rigor teórico imperar na feitura de ortografias, portanto, seria pouco provável que um artigo científico de um deles tivesse atuado em vez de actuado.

De facto, tendo em conta o “portuguez lingua escripta” (denominação cunhada em 1881 por Francisco Adolfo Coelho) do tempo de Gonçalves Viana e Leite de Vasconcelos, nunca lhes ocorreria ao lerem uma forma atuado que esta pudesse ser um actuado despojado do seu cê. Todavia, isso acontecerá a um leitor de português na actualidade, afectado pela imposição do AO90 e levado a fazer uma interpretação errada de uma palavra portuguesa, neste caso, de uso dialectal.

Convém recordar que actuar e actuado justificam a consoante cê, por pertencerem ao grupo de “palavras de derivação ou afinidade evidente” (Gonçalves Viana, Ortografia Nacional, 1904), mantendo-se a consoante quando há “derivação manifesta de outro vocábulo” (Gonçalves Viana e Vasconcelos de Abreu, Bases da ortografia portuguesa, 1885) em que a consoante “influi na pronúncia da vogal precedente” (Gonçalves Viana, ON, 1904). Acrescente-se uma perspectiva curiosa. Com o AO90, temos a mesma palavra gráfica atuado a significar uma coisa e o seu contrário: por um lado, atuado “sem acção”, por outro, *atuado de actuar “exercer acção”.

Além destes dois atuado, convém lembrar um terceiro: o particípio passado de atuar significa na norma padrão “tratado por tu”. Também aqui a supressão do cê de actuado nada ilumina, antes pelo contrário. Este é um aspecto prático importante, embora menos popular entre os detractores do AO90, comparado com as críticas à perda das indicações diacríticas, cujo valor se verifica em pares mínimos (coacção/coação; facção/fação; corrector/corretor; espectador/espetador; pára/para), ou às confusões morfológicas (por exemplo, aspecto passa a *aspeto, mas aspectual pode manter o cê e pode perdê-lo).

Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos e Adolfo Coelho fizeram parte da comissão responsável pela ortografia de 1911, cuja modernidade é patente pela ausência até hoje de corrente científica a propor a transformação do alfabeto latino num alfabeto fonético o programa de 1945 de Rebelo Gonçalves constituiu uma continuação de 1911 e não uma ruptura. Há uns anos, o professor Jorge Morais Barbosa (1937-2015) indicava, num fórum selecto de opositores ao AO90, uma entrevista do linguista Alain Bentolila, em que este criticava o conceito “simplificação ortográfica”, que não conduz a uma melhor compreensão da palavra escrita, sublinhando que correspondência entre letra e som já existe no alfabeto fonético internacional.

2. Referi há pouco que o aspecto passa a *aspeto, sim, mas convém recordar que isso só acontece fora do Brasil. Sabe-se que, devido a uma quimera sem qualquer tradução linguística, mencionada em inúmeros discursos políticos, chamada “unidade essencial da língua”, decidiram fazer, publicitar e aplicar o AO90. Ora, entre as várias formas ortográficas mudadas pelo AO90 na norma europeia, mas mantidas intactas no Brasil (cf. PÚBLICO, 15/03/2015), encontramos então aspecto transformado num aspeto afim de espeto e recepção feita receção semelhante a recessão. Isto é, um autor português que adopte o AO90 e envie um texto para publicação numa editora brasileira, também ela adoptante do AO90, verá o cê reposto no aspecto e o pê devolvido à recepção. Portanto, tanto trabalho em prol da “unidade essencial da língua” e, pior, tanto trabalho do nosso autor a tirar consoantes para nada. De facto, a parte da “unidade essencial da língua” no mundo de expressão portuguesa assegurada pelo aspecto e pela recepção perdeu-se, justamente, devido ao AO90. Aparentemente, tudo continua como está porque decidiram mudar tudo. Todavia, de facto, nada está como dantes: tudo está bem pior.

3. Há dias, pelo PÚBLICO, soubemos que uma estátua de Cristóvão Colombo fora retirada do Grand Park, em Los Angeles, nos EUA, “ao abrigo de uma moção aprovada em 2017 que substituiu o feriado do Dia de Colombo pelo Dia dos Povos Indígenas na cidade”. Curiosamente, Steve Hackel, professor de História na Universidade da Califórnia, Riverside, e apoiante e promotor desta moção, manifestou dúvidas sobre esta acção da vereação da cidade, por ter sido decidida “quase em segredo e sem debate”. Como vemos, não é só em Portugal que determinadas decisões são tomadas de forma pouco transparente e sem discussão.

António Costa disse recentemente que Portugal “fez a sua parte”, ao seguir os trâmites conducentes à adopção do AO90. Não é verdade. Aliás, só pode tecer uma afirmação dessas quem nunca leu os pareceres de 2005 da Associação Portuguesa de Linguística e do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (cf. PÚBLICO, 18/5/2016). Os pareceres recomendavam que Portugal não ratificasse o Segundo Protocolo Modificativo. Sublinho que na frase anterior há um ‘não’ antes do ‘ratificasse’. Para que não haja dúvidas: Portugal não fez a sua parte. O poder político não fez aquilo que devia.

[Transcrição integral de ‘Sem acção, isto é, atuado’, da autoria de Francisco Miguel Valada. Público” (online), 1 de Dezembro de 2018. Acrescentei destaques e “links” (a verde). Imagem de topo de: University of Toronto (Archive.org).]