Dia: 14 de Dezembro, 2018

Missão omissão

Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.

– Estou a escrever, disse ele.

Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:

– Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios… Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber. Boas noites, papá, boas noites.

No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e do vento que acalmara, ressoavam por cima lentos e contínuos os passos de Pedro.

A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo – quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.

‘Os Maias’, cap. II, 37/519

 

Não me refiro ao facto de não haver naquele epistolar “apelo” uma única referência, uma só alusão ao “acordo”, ainda que metafórica ou elíptica, se bem que essa espécie de “lapso”, essa tão ruidosa omissão merecesse — sem necessariamente chegar a extremos de palmatoadas mentais — alguma espécie de reparo.

Mas deixemos isso, por enquanto.

O caso agora é que… bálhamedeus!

Vês como respira?“, pergunta ele ao coitado do aluno.

“Não, não vejo”, responderia o pobre catraio, aposto, bocejando, se porventura alguém o fosse chatear lendo a cartinha.

Eh, pst, ó Afonso, pá, olha, este tipo de “abordagem”, escorrendo o visco paternalista e condescendente que tipifica a infantilidade moderninha, decididamente, não funciona com a garotada. Não funciona, aliás, com ninguém, use ou não use calções, tenha já ou ainda não largado os cueiros.

E “calhamaço”, caneco, dizes tu, rapaz, na tua missiva à rapaziada, sobre o livro de teu tetravô Eça. Bálhamedeus, repito. Correr ‘Os Maias’ assim, à matroca, dar-lhe roda de “calhamaço”, bem, essa foi cruel, essa foi demasiadamente muito, irra, essa foi de escachar! Eça não merecia essa, digo eu, sem trocadilhos foleiros, que ninguém merece.

E ainda, dizes, “obras como Os Maias e escritores como o Eça de Queiroz dão-te armas para o futuro“. Ui. Nem me lo digas! Armas? Quais armas, quais cacete, santinho!? Mas que ideia tão desnecessariamente marcial, mas que “imagem” tão fatela! Isso das “armas para o futuro” tresanda a “5.ª emenda”, man, lembra a NRA e cromos como Charlton Heston (iach!) ou, horror dos horrores, Chuck Norris (blherrgh!).

Bem sei tratar-se o armamento de simples metáfora (ah, metonímia? Ok, atão vá, metonímia), mas sucede com a Literatura  precisamente o inverso, Afonso, e por maioria de razões é a escrita de Eça, em geral, coisa de paz, e em particular ‘Os Maias’ — paz celestial, oh, doce remanso do sonho vigil, em recato impúdico a pura delícia do sossego absoluto!

Era teu tetravô José Maria (tetravô, notarás, não tretavô) então o mesmo jovem que ainda hoje, aos 130 anos, desmonta elegantemente do seu dog cart, entra em tua casa estugando o passo e assesta em ti o seu monóculo, já rebrilhante, mordaz, faiscando de curiosidade. A escrita desse eterno jovem, jovem, é pura magia, colhe e prende e arrebata — precisamente — pelo fascínio do conforto, o engodo da “verve” escorreita que acolhe numa atmosfera repousante o mais irrequieto dos espíritos. Ou seja, dos velhos de todas as idades entre os 13 e os 130.

Mas que chorrilho de vulgaridades, raios, quero dizer, até um puto sabe disto.

Está, por conseguinte, muito mal formulada a questão, essa bipartida pergunta fraquinha, fraquinha: “Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?

Pois sim, pois respira. Mas não, não precisa de garoto algum para sobreviver. Não cabe pedir aos ganapos  seja o que for. Se querem ler, lêem. Se não querem, não lêem.

E se não quiserem, eles é que ficam a perder. Nisso estás tu, jovem, carregadinho de razão; menos mal, salva-se o final.

Carta ao aluno que não lê “Os Maias”

Sílvia Souto Cunha
visao.sapo.pt, 06.12.18

O escritor Afonso Reis Cabral, trineto de Eça de Queirós, escreveu para a VISÃO uma carta aos estudantes sobre o “calhamaço” publicado há 130 anos e ensinado nas nossas escolas. “Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?”

O calhamaço que te obrigam a ler na escola está velho. Foi escrito há 130 anos (imagina a tua vida multiplicada por oito), é pois natural que te pareça demasiado pesado, um cadáver de papel do qual queres livrar-te o mais rapidamente possível. Mas atenção, tem calma. Pega-lhe com cuidado, sopesa-o na palma da mão como o telemóvel do qual dependes.

Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?

Eu sei: a obrigação pesa. Só o facto de te meterem o livro à frente, de o analisarem contigo; pior, de o limitarem àquele tipo de estudo muito vazio que visa o exame, só isso já te estraga a vontade. A mim também estragou. Mas repara: o Eça não tem culpa de o submeterem à burocracia do ensino, de o terem posto nessa camisa de forças, e de te obrigarem a ti, que tens mais que fazer, a acatar ordens. Pensa que ele não escreveu para ti. Quer dizer, para te estragar a vida. Muito pelo contrário.

Talvez por te sentires encurralado, preferes trocar apontamentos nos corredores, pedir os esquemas ao idiota útil que até conseguiu ler a obra toda, ou, mais simples, talvez te decidas pelos primeiros cinco resultados no Google. Estes falam das características físicas e psicológicas das personagens, dão-te tabelas com datas, citações, resumos de cada capítulo, expõem a biografia do Eça – esse escanzelado de monóculo –, explicam a analepse inicial, sempre gigantesca, mostram laivos da vida no século XIX, e descrevem o virar do Romantismo para o Realismo. Mas que te interessa a ti como viviam as pessoas daquela época? De facto, concluis tu, só um parvo pode achar que este livro tem qualquer interesse.

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