Missão omissão

Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.

– Estou a escrever, disse ele.

Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:

– Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios… Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber. Boas noites, papá, boas noites.

No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e do vento que acalmara, ressoavam por cima lentos e contínuos os passos de Pedro.

A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo – quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.

‘Os Maias’, cap. II, 37/519

 

Não me refiro ao facto de não haver naquele epistolar “apelo” uma única referência, uma só alusão ao “acordo”, ainda que metafórica ou elíptica, se bem que essa espécie de “lapso”, essa tão ruidosa omissão merecesse — sem necessariamente chegar a extremos de palmatoadas mentais — alguma espécie de reparo.

Mas deixemos isso, por enquanto.

O caso agora é que… bálhamedeus!

Vês como respira?“, pergunta ele ao coitado do aluno.

“Não, não vejo”, responderia o pobre catraio, aposto, bocejando, se porventura alguém o fosse chatear lendo a cartinha.

Eh, pst, ó Afonso, pá, olha, este tipo de “abordagem”, escorrendo o visco paternalista e condescendente que tipifica a infantilidade moderninha, decididamente, não funciona com a garotada. Não funciona, aliás, com ninguém, use ou não use calções, tenha já ou ainda não largado os cueiros.

E “calhamaço”, caneco, dizes tu, rapaz, na tua missiva à rapaziada, sobre o livro de teu tetravô Eça. Bálhamedeus, repito. Correr ‘Os Maias’ assim, à matroca, dar-lhe roda de “calhamaço”, bem, essa foi cruel, essa foi demasiadamente muito, irra, essa foi de escachar! Eça não merecia essa, digo eu, sem trocadilhos foleiros, que ninguém merece.

E ainda, dizes, “obras como Os Maias e escritores como o Eça de Queiroz dão-te armas para o futuro“. Ui. Nem me lo digas! Armas? Quais armas, quais cacete, santinho!? Mas que ideia tão desnecessariamente marcial, mas que “imagem” tão fatela! Isso das “armas para o futuro” tresanda a “5.ª emenda”, man, lembra a NRA e cromos como Charlton Heston (iach!) ou, horror dos horrores, Chuck Norris (blherrgh!).

Bem sei tratar-se o armamento de simples metáfora (ah, metonímia? Ok, atão vá, metonímia), mas sucede com a Literatura  precisamente o inverso, Afonso, e por maioria de razões é a escrita de Eça, em geral, coisa de paz, e em particular ‘Os Maias’ — paz celestial, oh, doce remanso do sonho vigil, em recato impúdico a pura delícia do sossego absoluto!

Era teu tetravô José Maria (tetravô, notarás, não tretavô) então o mesmo jovem que ainda hoje, aos 130 anos, desmonta elegantemente do seu dog cart, entra em tua casa estugando o passo e assesta em ti o seu monóculo, já rebrilhante, mordaz, faiscando de curiosidade. A escrita desse eterno jovem, jovem, é pura magia, colhe e prende e arrebata — precisamente — pelo fascínio do conforto, o engodo da “verve” escorreita que acolhe numa atmosfera repousante o mais irrequieto dos espíritos. Ou seja, dos velhos de todas as idades entre os 13 e os 130.

Mas que chorrilho de vulgaridades, raios, quero dizer, até um puto sabe disto.

Está, por conseguinte, muito mal formulada a questão, essa bipartida pergunta fraquinha, fraquinha: “Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?

Pois sim, pois respira. Mas não, não precisa de garoto algum para sobreviver. Não cabe pedir aos ganapos  seja o que for. Se querem ler, lêem. Se não querem, não lêem.

E se não quiserem, eles é que ficam a perder. Nisso estás tu, jovem, carregadinho de razão; menos mal, salva-se o final.

Carta ao aluno que não lê “Os Maias”

Sílvia Souto Cunha
visao.sapo.pt, 06.12.18

O escritor Afonso Reis Cabral, trineto de Eça de Queirós, escreveu para a VISÃO uma carta aos estudantes sobre o “calhamaço” publicado há 130 anos e ensinado nas nossas escolas. “Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?”

O calhamaço que te obrigam a ler na escola está velho. Foi escrito há 130 anos (imagina a tua vida multiplicada por oito), é pois natural que te pareça demasiado pesado, um cadáver de papel do qual queres livrar-te o mais rapidamente possível. Mas atenção, tem calma. Pega-lhe com cuidado, sopesa-o na palma da mão como o telemóvel do qual dependes.

Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?

Eu sei: a obrigação pesa. Só o facto de te meterem o livro à frente, de o analisarem contigo; pior, de o limitarem àquele tipo de estudo muito vazio que visa o exame, só isso já te estraga a vontade. A mim também estragou. Mas repara: o Eça não tem culpa de o submeterem à burocracia do ensino, de o terem posto nessa camisa de forças, e de te obrigarem a ti, que tens mais que fazer, a acatar ordens. Pensa que ele não escreveu para ti. Quer dizer, para te estragar a vida. Muito pelo contrário.

Talvez por te sentires encurralado, preferes trocar apontamentos nos corredores, pedir os esquemas ao idiota útil que até conseguiu ler a obra toda, ou, mais simples, talvez te decidas pelos primeiros cinco resultados no Google. Estes falam das características físicas e psicológicas das personagens, dão-te tabelas com datas, citações, resumos de cada capítulo, expõem a biografia do Eça – esse escanzelado de monóculo –, explicam a analepse inicial, sempre gigantesca, mostram laivos da vida no século XIX, e descrevem o virar do Romantismo para o Realismo. Mas que te interessa a ti como viviam as pessoas daquela época? De facto, concluis tu, só um parvo pode achar que este livro tem qualquer interesse.

Os bons professores libertam-se dos formalismos do ensino burocrático e são generosos a ponto de te mostrarem Os Maias a outra luz, apesar de perceberem que tentas ignorá-los. Querem mostrar-to não como livro-montanha, uma seca difícil de escalar, mas sim como porta para a descoberta.

Se te mantiveres na tua, até podes acabar o ano lectivo com uma nota decente no exame e a consciência tranquila. Mas confessa lá, sê honesto. Apesar dos muitos preconceitos, aposto que algures entre os teus afazeres já surgiu uma suspeita inquietante.

De noite, ouves um chamamento vindo da mochila onde esqueceste o calhamaço, como se este cantasse baixinho. Embora queiras rejeitá-lo, talvez acabes por aceitar, e ainda agora to disseram na aula de Português, que estás no limiar da tal descoberta.

Por isso levantas-te, resgatas o livro (sim, tem 130 anos mas aguenta-se firme enquanto o manuseias) e passas além de “A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na rua de São Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete.”

Quando dás por ti, a obrigação de ler nada significa; depois de superares a primeira descrição mais longa, os diálogos mais enfadonhos, estás em pleno ritual de passagem, cativado por essa coisa maravilhosa e produtiva chamada curiosidade; quando chegas a meio, percebes que o medo do desconhecido, que até então te constrangia, caracteriza quem evita crescer; e ao acabares, até sorris num momento autodepreciativo próprio de quem é inteligente.

Descobriste que a ironia é uma forma de realçar incongruências (o “foi ali” de Alencar), que a cultura é insignificante se não entrarmos a fundo na vida (Carlos da Maia, a quem tudo foi dado, nada fez), que há sempre dois lados na mesma relação (os beijos da condessa de Gouvarinho a compensarem a indiferença de Carlos), que o humor ilumina os momentos mais tensos (Vilaça a buscar o chapéu em plena conversa difícil), e que a procura de projecção social sem substância é ridícula (quantos Dâmasos Salcede não existem no Instagram?), entre tantos outros exemplos.

Tal como te avisaram, percebes que ainda hoje muitas das pessoas que ali encontras se repetem, não porque a nossa sociedade seja igual à do século XIX, mas porque o ser humano continua o mesmo, e o Eça conseguiu captá-lo na sua universalidade.

Repara que nem falei de incesto. Mas se queres ir por aí, muito bem: vais encontrar dois irmãos na cama, sendo que um deles continua a deitar-se nela mesmo depois de saber a verdade. Deixo-te o spoiler porque a boa literatura não depende só do enredo.

Se ainda não estiveres convencido, asseguro que este livro, embora calhamaço, te vai dar simplesmente o prazer único e memorável de uma boa história.

Enquanto tens esse prazer, usas o melhor dos músculos. O mais potente. Exercitas o cérebro contra a superficialidade, conheces os fios que cosem o dia a dia, enriqueces o raciocínio – vais ganhando experiência. Na verdade, precisas de muitas vidas para viver a tua vida, e podes encontrá-las nos livros.

A tua obrigação não é para com a escola, os professores, a nota. A tua única obrigação é para contigo, para com o teu próprio crescimento, e obras como Os Maias e escritores como o Eça de Queiroz dão-te armas para o futuro.

Se suspeitares disto e mesmo assim decidires não ler, preferindo resumos que esquecerás logo depois do exame, paciência. Tu é que ficas a perder.

Afonso Reis Cabral ganhou o Prémio Leya em 2014 com o livro O Meu Irmão. Em 2018 editou o seu segundo romance: Pão de Açúcar

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